*Franklin Jorge
“Sobre os escritores” – colagem de fragmentos de outras obras do autor – não é dos livros mais brilhantes e persuasivamente Canetti. Dá para ler, saltando-se algumas páginas que despertariam uma morrinha no leitor. Não, a obra não tem a esperada complexidade, a metafísica e o mistério de um texto babélico de Canetti. Em síntese, o autor de Massa e poder, parece exangue de argumentos. São notas de um escritor.
Avulta, no entanto, que o autor de Auto de Fé leu tudo e abeberou-se ainda mais dos Clássicos e dos autores que nos fazem pensar, que nos impelem para alguma espécie de abismo sem fundo. Como o próprio Canetti, que é difícil ler e não admirar.
E, não sem uma forte convicção, formou-se em Química; e foi escritor por toda a vida.
Canetti é uma personalidade múltipla, complexa, abissal e obsessiva; um ser que ao ler deglute os seus autores, incorporando-os a si mesmo e a uma organização mental impressionante e única, digna de um portentoso visionário da literatura. Alguém assim como o nosso João Lins Caldas – que escreveu em versos -, um ou Thomas Mann, um Goethe, um Shakespeare.
Defende no escritor que é importante, em literatura, que muita coisa seja omitida e que, sem a desordem da leitura, não existiria o poeta. Um criador enfim que não se deixa dominar pelo hábito e que faz recuar limites e com a sua arte enseja uma experiência mais vivida e multíplice.
Escreve-se para ser diferente e para cultivar uma ferida sempre aberta, conclui Canetti sobre a escritura como compulsão; ele, que escreve compulsivamente, produziu milhares de manuscritos ainda inéditos.
Estamos diante de um escritor que pensa demais. E, como o mais miserável dos homens – um merceeiro que se perdeu entre as palavras -, Canetti gosta de escritores que se restringem; que escrevem – por assim dizer – abaixo de sua inteligência. Escritores que, como o próprio Canetti, procuram se esconder da sensatez.
Malgrado constitua uma enciclopédia viva e expansiva, uma de suas páginas mais empolgantes pareceu-me ser a que escreveu sobre Tasso e ao fazê-lo faz-nos descobrir a dimensão da humilhação de um escritor entre os grandes. Considera Canetti que não há em toda Renascença pessoa mais ‘moderna’ que Tasso. E, dos grandes escritores, aquele que mais foi humilhado.
Tasso inspirou Édouard Manet e, antes, Delacroix. Deu ensejo ao soneto de Baudelaire que o fez instigado pelo pintor que lhe deve os melhores estudos e apreciações de sua arte, cuja música pungente se faz ouvir na tessitura dessa meditação estética de um leitor exemplar que, como escritor, escrevendo sobre os escritores, o faz num tom abaixo de sua inteligência.
E eis a voz de Baudelaire sobre o Tasso na prisão, de Eugène Delacroix (1798-1863):
O poeta na masmorra, em desalinho, aflito,
Calcando sob o pé convulso um manuscrito,
Com olhar de terror mede a extensão da escada
Cuja vertigem lhe atordoa a alma abismada…
[…]
O que escreveu sobre Shakespeare, Goethe, Proust, frioleiras que desmerecem o autor! Melhor que não tivesse feito trabalho indigno de Canetti, que escreveu nalgum a parte do seu livro – do livro que me decepciona -, do livro que decepcionará o leitor versado num pouco do muitíssimo Canetti que há em Canetti. Queria mais Canetti. Famélico que sou de seu talento inenarrável.
Ei-lo, o insight desse mestre aqui flagrado numa má performance:
Somente desde que li o poema de Blake sei o que é um tigre…
Elias Canetti trocaria todo o chiste do mundo e metade do espírito por uma linha daquele que via os anjos e condenava as invenções humanas.