*Francisco Alexsandro Alves
Rir é um ato satânico. Em um crescendo de loucura, do sorriso da Mona Lisa às gargalhadas de Democritus dos pintores nórdicos do século XVII, aos sisudos do século XVIII, em que quase inexistem pessoas rindo nas belas artes, o riso só ganha força na arte no século XX. A igreja entendia o riso como o princípio da comunicação de Satanás com o homem, daí então o único caminho possível seria a loucura do indivíduo. Rir é permanecer no hospício.
Observando as pinturas em que sorrisos têm algum lugar, quase sempre são figuras desdentadas, caricaturais, mesmo com aspecto maligno e gestos de escárnio. No teatro, os grandes heróis não sorriem, com poucas exceções, o riso não é masculino, ao menos não é masculinamente viril. No século XVIII, Beaumarchais, nos anos revolucionários franceses, usa seu personagem Fígaro, em uma trilogia teatral, para satirizar e incomodar as monarquias europeias. Aos risos e troças, Fígaro ridiculariza a nobreza, mas também coloca, em suas gargalhadas, uma torrente de críticas sociais e políticas que fariam suas peças serem proibidas em várias nações da Europa. Quando Mozart quis transformar em ópera “As Bodas de Fígaro”, segunda parte da trilogia zombeteira e política de Beaumarchais, enfrentou inúmeros percalços. Com a revolução já instaurada, não foi difícil para Rossini transpor “O Barbeiro de Sevilha”, primeira parte da trilogia, para o território operístico, criando assim sua obra-prima cômica. A terceira parte dessa trilogia, um drama e não uma comédia como as duas primeiras, “A Mãe Culpada”, foi posta em ópera por Milhaud no século XX.
No século XIX, o riso torna-se uma espécie de filosofia cinzenta sobre o mundo. Machado de Assis nos arranca um sorriso triste com as desventuras de muitos de seus personagens. O sorriso machadiano é ironia sobre o destino algumas vezes, impotência do homem contra o domínio da loucura, em outras, findando no riso amargurado de uma dúvida sem fim. Eles não sorriem, nós sorrimos, em um paradoxo de tristeza diante da condição humana, que em Machado é sempre frágil, melancólica e pessimista. Em Machado, a tristeza leva ao riso. Gogol, em “Almas Mortas”, pinta a loucura que pouco a pouco vai tomando seus personagens, em uma mistura de catolicismo e riso que muitas vezes beira o surrealismo, em que o mal é o agente de toda a gargalhada, dele brotam situações de um humor grotesco, ácido e crítico.
Na ópera do século XIX, temos uma novidade e um retrocesso com o mesmo mestre. Em “Siegfried”, o herói wagneriano é feliz e sorridente: ele ri ao final de todos os atos. Sua entrada no primeiro ato dá-se aos risos, ele ri ao forjar uma espada, ele ri ao dialogar com um passarinho, ele ri ao despertar Brünnhilde e os dois terminam o terceiro ato aos risos pela descoberta do amor. Porém, em “Parsifal”, o riso é interditado. O riso de Kundry, é o riso de uma mulher amaldiçoada por ter gargalhado de um certo homem crucificado.
A pintura oitocentista, sobretudo a de “fin de siècle”, impressionista, explora a leveza da vida social parisiense, mas não é estranho que poucas vezes os retratados realmente estejam sorrindo? Nem mesmo as bailarinas de Degas de fato sorriem. Manet transformou os bares de Paris em tema para suas pinturas, estes lugares alegres, onde as pessoas se confraternizam e sorriem. Mas, “Un Bar aux Folies-Bergère”, mostra uma moça triste e melancólica diante das luzes e da vida urbana em turbilhão a sua frente. Toda a leveza e graça da burguesia parisiense e de suas crianças, geralmente meninas, não provocam um mínimo mostrar de dentes em Renoir.
Talvez com as duas grandes guerras, o século XX tenha, aos poucos, descoberto o valor do riso. Praticamente toda a modernidade deriva de uma revolta risonha, ao menos na arte. Dadaísmo, surrealismo, modernismo brasileiro, na pintura, na música, na literatura e no nascente cinema, as expressões sorridentes abundam. Mesmo assim, precisamos fazer essa colocação: a arte novecentista está ligada aos processos industriais, e o riso vende mais do que a tristeza ou a seriedade. Novamente, o riso se liga ao mal… Na forma do vil metal…