• search
  • Entrar — Criar Conta

Rua Prof. João Manuel 239, Boa Vista.

Fragmento de livro do Fundador de Navegos sobre seus felinos, em registro de Mossoró, cidade que o atraiu desde a infância, por seu teatro, suas boas livrarias e cinemas. Por seus notáveis artistas. A crônica descreve a visita de um Agente de Saúde contra o mosquito da dengue.

Franklin Jorge

– Ah estou vendo o que senhor também gosta de gatos…

– V. gosta, pergunto ao agente de saúde que veio vistoriar a casa para detectar focos do mosquito da dengue.

– Quem me dera! Esse gosto é de escritores…

– Não estou entendendo…

– É o senhor e a Lygia Fagundes Telles pra gostarem de gatos…

Ele explica-me que lera em algum lugar que a escritora paulista, coisa que eu ignorara até então, era louca por gatos.

– Como os escritores em geral, acrescenta, ancho de saber. Dizem que o gato é o animal de estimação dos escritores e das pessoas que gostam de se entregarem aos pensamentos. Até Clarice Lispector, que se ocupou de escrever sobre galinhas, gostava de gatos. Mas, não sei porquê, em vez de gatos tinha um cachorro chamado Ulisses que era doido por cerveja…

E, antes que eu lhe faça mais perguntas, sorri e diz que leu isto também sobre a autora de “O Lustre”.

Intrigado, pergunto-lhe de onde tirara a idéia de que sou escritor. Não será por causa dos livros, pois há tanta gente que tem biblioteca por vaidade: não lê nem escreve nada.

– Ora, o senhor está em Mossoró, cidade de muro baixo. Se não quiser que saibam de seus gostos, tenha-os em segredo ou não os tenha, o que seria ainda melhor, vivendo aqui…

Ainda assim continuo intrigado.

– Quem não o conhece aqui…? Só quem não tem entendimento das coisas da cidade. Além disso, essa Boa Vista é uma irmandade onde todos se conhecem, até aqueles que não querem se dar por achados…

E a conversa segue nesse tom enquanto a casa é vistoriada.

– Lindos os seus gatos…

Informo-lhe que são duas gatas.

– Certamente têm nome próprio…

Claro que têm. E apresento-lhes Daiane, a siamesa, morbidamente possessiva como uma fêmea, a acróbata da casa; e Pikitita, uma viralata aristocrática que recolhi faminta e à beira da morte, lá na Praça da Convivência, onde recebia alguma atenção dos vigias. Todo o seu corpo era uma dermatite fria só. Em seis meses, submeteu-se a três cirurgias e agora, gorda e feliz, esbanja saúde. E até triplicou de tamanho…

– Noto que ela o acompanha por toda a parte — diz o homem enquanto revirava a casa a procura de larvas. — Já Daiane é meio zanha e quero crer que tem ciúmes de Pikitita…

Tudo isto ele observa com precisão.

– O senhor deve saber que as siamesas, apesar disso, com perdão da má palavra, são umas grandes vagabundas…

Não, não sabia.

– Quando no cio, escolhem sempre os gatos mais ordinários do pedaço…

Explico-lhe que as gatas, apesar da má fama, só transam com um único gato a cada cio. Quanto a serem os seus amantes os mais ordinários, bem, já notei que Daiane não é das mais exigentes  em matéria sexual e, para o meu desgosto, já andou saindo com um tribufu que meus vizinhos chamam de “o Rebaixado”, pois tem a particularidade de, por ter as pernas curtíssimas, andar por aí arrastando a barriga pelo chão.

– Vejo que as trata muito bem. Isto revela a sua boa formação…

E ai ele me conta que faz uma ideia do caráter das pessoas pela maneira como se relacionam com os animais. Não escondo minha curiosidade e ele não se faz de rogado.

– O mau caráter a gente conhece pelo tratamento que dispensa aos bichos brutos, arremata, despedindo-se, após realizar meticulosamente o seu trabalho. Até a próxima e me desculpe o incômodo! Lindas gatas, as suas. E gostam do senhor…

Extraídos do livro “Fantasmas Cotidianos” [2ª. edição]

Pikitita e Dayane