*Franklin Jorge
Como alguns poucos autores que temos lido, Baudelaire é um nome referto de sortilégios. Lembro-me perfeitamente da sensação de plenitude e abismo que me dominou quando o li pela primeira vez, adolescente no Assu, atraído que fora, ainda menino, por seu mistério, ao ouvir o seu nome pela primeira vez. Quem, senão ele, poderia ter escrito que a poesia é a infância reencontrada?
Advertiu-nos Baudelaire, em um de suas admiráveis percepções, que não devíamos alimentar a curiosidade de conhecermos o que ele chamou de “os bastidores do gênio”, certo de estar que nos surpreenderíamos com as temíveis minudências que só dizem respeito à vida íntima do artista.
Criador do conceito de Modernidade, sabia por experiência própria que nessa seara há mais coisas do que poderia sonhar nossa vã filosofia. Intelectualmente aristocrata, seria considerado até por seus desafetos um Príncipe das Letras e igualmente um vagabundo pela maioria curiosa de seu talento. sentiu na própria carne que o talento é o açoite mais cruel.
Meu coração desnudado – um dos livros mais fundamentais da literatura de todos os tempos – corporifica um insight de Poe sobre a espécie de livro que devia escrever um criador genuíno que ousasse desnudar-se sem pudor, ao penetrar as camadas mais profundas da alma e da consciência. Quem ousasse escrever esse livro – afirma Poe – devia firma-lo com o título Meu coração posto a nu. Foi o que fez Baudelaire. Tradutor de Poe para sua língua, em sua colaboração jornalística em Paris fez-se passar algumas vezes como o autor de textos de Edgar Allan Poe, autor que ele deu a conhecer aos franceses e que de alguma forma corrobora suas ideias estéticas. Assim, Meu coração desnudado seria também um livro que ele escreveu para datar o seu ódio.
Ao ler suas notas, avulta-se um Baudelaire desconhecido e em contumaz usufruição anônima dos outros, ao deambular pelas ruas de Paris, possuído pela sensação de embriaguez que nos desperta as grandes cidades, completamente entregue a ideias fixas que alimentam e dão vida ao artista cônscio do que cria.
Embora acreditasse que as criações do espírito são mais vivas que a matéria, intuía no homem maduro, ardente e triste e um tanto vago, uma fatal inclinação para o desgaste. afirmou que o ar da noite seria maligno para o trabalho, e o trabalho como uma força progressiva e acumulativa. aconselhou-nos, portanto, a trabalhar – ele que tinha a fama de vagabundo – às cegas, mesmo sem objetivo um louco, pois o hábito de realizar afasta o medo. afinal, o trabalho engendra os bons costumes.
Nenhum escritor exerceu maior fascínio sobre seus pósteros que Baudelaire. Fascinou Proust, fascinou Borges e fascinou Antonio Carlos Villaça, meu grande mestre, que assim puderam, cada um a seu modo, de alguma forma, repeti-lo e por em prática suas ideias mais recônditas. Sempre tive a impressão que mesmo quem nunca o leu sonhou puder fazê-lo algum dia.
Tinha ideias que atemorizavam e indignavam os burgueses. Assim pode dizer que se um homem tem mérito, por que condecorá-lo? E, se não o tem, aí, sim, pode ser condecorado, porque isto lhe dará algum destaque na sociedade e afagará seu ego inflado. Em resumo, a seu ver, só há três tipos humanos respeitáveis: o padre, o guerreiro e o poeta. Saber, matar e criar.