• search
  • Entrar — Criar Conta

Salve a mandioca

Colaborador de Navegos faz a crítica de seriado baseado em estudo de Luís da Câmara sobre a alimentação no Brasil, dirigido por Eugênio Puppo.

*Alexsandro Alves

A Amazon Prime produziu a série A História da Alimentação no Brasil. Os programas, além de interessantes pelo tema em si, também têm um outro atrativo, bem particular, para nós, atuais comedores de camarão: os filmes são baseados no livro homônimo do Mestre Câmara Cascudo.

O primeiro episódio é sobre a base de nossa colonização, em ternos culinários: a mandioca! Chamada de “a rainha do Brasil”, não foi à toa a saudação presidencial de Dilma Rousseff à mesma, quando, em um gesto inesperado, tomou nas mãos uma mandioca e a ergueu, em um discurso, diante de indígenas. Na época esse gesto foi criticado com muita zombaria. No entanto, a saudação à mandioca tem raízes históricas e antropológicas, míticas, ligadas à própria gênese do brasileiro. Cascudo abaliza esse entendimento sobre a mandioca – vegetal que, sem ele, provavelmente o povoamento do Brasil seria impossível, ou se daria de forma drasticamente diversa.

O sociólogo Carlos Alberto Dória define a importância da raiz tuberosa indígena: “sem a mandioca não tem o povoamento do Brasil nos primeiros tempos”.

Ao longo desse primeiro episódio, e imagino que nos próximos isso se manterá, a presença da gente brasileira, com sua maneira de falar mais melodiosa, doce, com ritmos próprios não domesticados pela gramática oficial, e isso já nos remete a um grande amigo de Cascudo, padrinho de seu casamento, o paulista Mário de Andrade, o Cascudinho.

Mário sonhava com uma língua brasileira, que, diferente da rigidez portuguesa, seria uma língua mais própria do brasileiro, posto que baseada em suas rítmicas regionalistas próprias. Projeto impossível sob vários aspectos, evidentemente, dado ao gigantismo continental do país. Mas quando ouvimos esses sons brasileiros, a lembrança desse sonho modernista vem-nos logo à memória.

Cascudo, diferente de Mário, era mais consciente da grandeza que observava nas feiras e nos interiores do Brasil. Não seria o caso de romper e criar uma nova língua. Mas de entronizar a beleza dos costumes e dos mitos da mitologia brasileira. Quando Cascudo fala do mito, ele fala das pessoas mais simples de nossa gente – ele fala de tradições que construíram o Brasil tal qual é hoje. Não é uma ruptura, é uma continuidade que atravessa o tempo e se instala na memória.

A macaxeira desemboca nesse primeiro episódio como o ingrediente central da própria vida indígena. O complexo da mandioca, que envolve desde a escolha da raiz até seu preparo, seja para a alimentação ou como bebida, tem origem mítica. Uma índia engravidou sem conhecer homem, daí nasceu uma linda menina, chamada Mani, que morreu ao completar um ano de vida. No lugar em que foi enterrada nasceu uma nova raiz, que foi chamada “manioca”, a casa se Mani. Para o índio, esse vegetal era a morada derradeira de uma criança nascida, aos olhos ocidentais, de um milagre, de uma virgem.

Nenhum outro alimento é tão rico de significado quanto o aipim. Sua importância é mítica, social, econômica e sem dúvida, graças a essa raiz que muitos colonos portugueses sobreviveram. Os mantimentos, como o trigo, que chegava da Europa, ficavam em sua maior parte com a corte, no litoral. Nos primeiros tempos foi difícil a adaptação do homem branco a nossa rainha. “Comida de índio”, afirmavam, em tom depreciativo. Não sabiam eles que estavam diante de uma das mais ricas fontes alimentícias da humanidade.

Ah, Cascudo! Hoje, quando percebo o veneno que comemos em forma de alimentos processados, alimentos sem raízes, muitas vezes cancerígenos, me vem à mente a memória afetiva de nossos ancestrais – que consumiam a natureza sem depredá-la, que eram um com a diversidade ecológica, onde nada se perdia, nada era jogado fora, sobretudo o alimento, onde o comer era parte de uma celebração de ancestralidade e respeito, mítica. A rainha, sendo arrancada do solo, era transformada em alimento de seus súditos, e assim consumida, era festejada e novamente plantada, para que o ciclo se perpetuasse.