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Sangue no plenário azul

Autor acreano radicado em Natal narra a tragédia que vitimou suplente de senador no plenário da Casa Maior do Legislativo; crime, ocorrido em 1963, ficou impune e viúva trabalhou como lavadeira e empregada doméstica para sobreviver e educar os filhos

Antonio Stélio Araújo Castro

Os assassinos também pisam nobres salões.

A mais alta classe política do país, a dos senadores, não deixa de ser dada à irascibilidade, o torpor que cega o sujeito. Não por outra coisa, o plenário azul do Senado Federal não se mancha apenas de corrupção ou estelionato. Ele traz, também, a nódoa de sangue oriunda do bestial assassinato. Sim, isso é triste, porém, verdadeiro.

A ignomínia, às vezes, usa paletó.

E se duvidar, crachá.

Senão, vejamos: no dia 4 de dezembro de 1963, o senador Arnon de Mello (PDC-AL), pai do ex-presidente e atual senador Fernando Collor (PROS-AL), primeiro orador inscrito, com a tradicional pompa parlamentar, anunciou: “Senhor presidente, com a permissão de Vossa Excelência, falarei de frente para o senador Silvestre Péricles de Góes Monteiro, que me ameaçou de morte”.

Ele acendeu um estopim.

A frase foi suficiente para levar o senador Góes Monteiro (PTB-AL), que conversava com um colega no fundo do plenário, a apressar-se em direção à tribuna e, de dedo em riste, gritar: “Crápula!”. Arnon, então, atirou duas vezes atingindo o senador José Kairala (PSD-AC), que morreria cinco horas depois no Hospital Distrital de Brasília.

O plenário azul virou “saloon”.

A maioria dos senadores se jogou ao chão, enquanto Kairala, antes de ser atingido, com a ajuda do senador João Agripino (UDN-PB), tio do ex-senador José Agripino (DEM-RN), tentava desarmar Góes Monteiro, que engatinhava pelo chão com revólver à mão e, nesse momento, Kairala sentiu as balas trespassando os intestinos e veia ilíaca de modo lancinante.

E ouviu o chamado da morte.

Tudo causado por rixa regional.

Reza a lenda que Góes andava armado e prometera matar Arnon. Este, por sua vez, pôs um Smith Wesson 38 na cintura. E a coisa deu no que deu. Os dois foram presos. O Senado deu licença para que fossem processados. Ambos acabaram absolvidos. Nessa história, o pacífico Kairala levou a pior.

O destino, afinal, tem seus mistérios.

José Kairala, de 39 anos, era um comerciante da cidade de Brasileia, interior do Acre, na fronteira Brasil-Bolívia. Tinha três filhos, entre 2 e 6 anos, e deixou a mulher grávida. Ele era um suplente e assumira seis meses antes. E devolveria o mandato ao titular, José Guiomard, no dia seguinte. Justamente por isso, a esposa e os filhos estavam no plenário azul. E testemunharam o infortúnio.

Dando mais drama ao drama, no Senado, José Kairala não seria medíocre. Em pouco tempo, revelou-se assíduo, fez treze discursos e apresentou dois projetos, apesar de noviço. Levava a mesma inicial carismática, JK, consagrada por seu colega de bancada Juscelino Kubitschek. Anos mais tarde seria a vez do JK original mergulhar em sua tragédia pessoal.

Como todo efeito se desdobra…

Por conta do acontecido com o jovem e infeliz senador dos confins da Amazônia, a sua família retornou para o Acre. Depois seguiu para Minas Gerais, até fixar-se, em definitivo, no Distrito Federal, em 1977, onde sua viúva, para criar os filhos, trabalhou como lavadeira e doméstica. Dali pra frente, só veria o Senado Federal pelo lado de fora.

Repito: é triste, mas é verdade.

Está nos Anais do plenário azul.

Antonio Stélio Araújo Castro, professor, jornalista e filósofo, é autor dos livros “O Anjo Devasso” (Sebo Vermelho; 2016), “Rosalina, Meu Amor” (Editora 8; 2015), “O Escaravelho da Floresta” (Livre Expressão; 2012), dentre outros. Atualmente, finaliza “Crônicas da Praia do Meio”, que será lançado em novembro durante o Festival Literário de Natal (Flin).

BALA PERDIDA Momento em que o senador acreano José Kairala é socorrido por colegas no plenário do Senado; o alvo do alagoano Arnon de Mello seria seu conterrâneo e desafeto Góes Monteiro; dentre Projetos de Lei e outros Requerimentos, Kairala requereu que fosse transcrita para os Anais do Senado a reportagem “Brasil na Idade da Palha”, de Geneviéve Hofer, publicada na edição do dia 27 de julho de 1963 da revista “O Cruzeiro”, na qual o autor faz o mapeamento cultural (alimentação, indumentária, ancestralidade, dança, misticismo etc.) da população indígena tirijó, que habita o Norte do Pará