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Sentimento de poeta: farsa ou verdade?

A arte eleva quem dela se aproxima, mas não é capaz de melhorar ou humanizar quem a cria?

*Alexsandro Alves

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Malva Marina Trinidad Reyes Basoalto

As emoções que um poeta ou qualquer outro artista provocam na alma e no corpo de pessoas sensíveis aos seus talentos podem ser administrados em nossas vidas como faróis, elas são obras potentes e quando encontram um canal com o qual se conectam, podem transformar a existência, revolucionar.

Elas se tornam duradouras, perenes em nossa subjetividade. Quantas vezes não retornamos àquela poesia ou àquela música em busca de nossas próprias verdades? Como um consolo, como se fossem nosso lar, e são mesmo, buscamos a presença dessas criações como o filho busca o pai, queremos aprender delas, elas nos edificam.

Abaixo, dois excertos de dois poemas diferentes.

 

Excerto de um primeiro poema:

 

E o verso cai na alma como

ao pasto o orvalho

Que importa que me amor

não possa guardá-la

A noite está estrelada

e ela não está comigo

 

Excerto de um segundo poema:

Dá-me amor e me sorri

e me ajuda a ser bom

Não te firas em mim

seria inútil;

Não me firas a mim

porque te feres

 

Eis dois poemas de Pablo Neruda, pseudônimo de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, poeta chileno que, além de construir os versos de amor mais lindos de seu país, também foi senador pelo Partido Comunista do Chile. A verdade de toda a sua produção não passa dela mesma. Como ocorre com muitos artistas, essa verdade é presa no momento em que a obra é concluída, nem o artista a sente mais, pois é incapaz de reproduzir a mesma obra exatamente igual. Também observamos que esse sentimento que cria uma obra perene é fogo de palha, efêmero e fugaz.

É como se o poeta escravizasse esse sentimento por algum tempo e depois lhe desse alforria porque não precisa mais dele e conta com sua força para capturar outro sentimento no momento que precisar dar novas chibatadas. Será que já imaginamos como o mundo seria outro se o sentimento de uma criação literária ou artística de modo geral fosse duradouro ou mesmo eterno? Se o artista vivesse sempre como sua arte se mostra? Vivo e bom, pleno e generoso?

Infelizmente nunca é assim. Os grandes criadores são monstros cruéis que escondem as piores ferramentas de sua existência ao construir e dar ao mundo criações de um sentimento fugaz. O mal que vive na alma dos artistas quase nunca se manifesta em suas criações, ele é um fingidor, mais ainda, um mentiroso contumaz que mente sorrindo. Observem Pablo Neruda.

Esse poeta maior da língua espanhola, vencedor do Nobel de Literatura, um titã das letras sul-americanas. Ele teve uma filha com uma holandesa, o nome da menina era Malva Marina Trinidade Reyes Basoalto, morreu aos oito anos sem nunca conhecer o amor paterno. O pai a odiava. Por quê? Por que ela era feia, um monstro nascido com hidrocefalia, Neruda se referia a ela como “Ponto e vírgula” ou “Vampiresa de 3 kilos”. Nunca lhe dedicou um poema. Nunca cuidou dela. E a humilhava, nunca chamando-a pelo nome.

Imagino Neruda, após negar amor a sua filha monstruosa, escrever um poema sobre amor, sobre paz, sobre amizade. Ou quem sabe, após olhar a criatura com a qual o Céu lhe amaldiçoou, com todo ódio e amargura – e vergonha – possíveis, tecer versos sobre amor e felicidade, união e solidariedade.

Neruda sentia vergonha de sua filha – que nunca chamou de filha. Nunca a ajudou. A mãe a criou sozinha e a menina estava só, quando faleceu aos oito anos.

Porém sua poesia não inspira tais sentimentos. Então, por que não procurou trabalhar esses sentimentos com a filha? Que prazer existe em humilhar o sangue de seu sangue, em desprezá-lo? Deve haver algo de superior? E após isso escrever os mais humanos versos de amor.