Franklin Jorge
Chama-se “Pão dos Anjos” o que alimenta e gratifica a alma e o intelecto, como o convívio dos livros, as belas artes, e a fraternidade de homens sábios e experientes, de quem adquirimos alguma coisa digna de memória e reconhecimento.
Dante Alighieri (1265-1321), escritor canônico e intelectual de invulgar cultura e tirocínio, escreveu “Banquete” (Lafonte; 224 págs.; 2018) para exacerbar no leitor o apetite pelas lições dos grandes mestres. Nesse livro inacabado, atinge Alighieri uma culminância em prosa humanística suculenta e espirituosa, para deleite da mente e do espírito ávidos de saber.
Autor de uma obra densa, variada e sofisticada, eclipsada pela notoriedade da “Divina Comédia”, lembra-nos que Aristóteles naturalmente se apercebeu de que todos os homens desejam o saber e os prazeres que o vício proporciona. Um dom de imensos benefícios, sobretudo para aquele que se apercebe que exprimir bem o conceito é o que é mais apreciado no texto. O desejo, enfim, quis dizer-nos, leva à perfeição. Especialmente em uma obra considerada menor e que constitui, a um tempo, uma biblioteca e um banquete à maneira de Petrônio.
Esse homem, nutrido do Pão dos Anjos, considera o saber a clareza da bondade e o último grau da perfeição humana. Ensina-nos o autor de “Banquete” que a virtude, sob quaisquer circunstâncias, deve ser alegre e não triste. E uma coisa só é útil quando é usada, evoca o preceito bíblico que desconsidera a oração sem caridade. É um cardápio de percepções quase infinitas.
Alighieri não foi apenas o poeta de “Divina Comédia”, mas o notável humanista que se desdobra no autor de uma prosa que, inspirada nas mais ricas e sólidas leituras clássicas, alcança uma culminância que a torna um clássico moderno imprescindível ao humanismo.
Aclara, em seus avanços, as ebulições intelectuais da Idade Média, um laboratório fáustico, que culminaria no Renascimento, ao ampliar o conhecimento e os limites do mundo conhecido.
“Banquete” é um manual enciclopédico que, em língua popular, prodiga ao inculto e ao homem do povo um saber privativo dos grandes estudiosos versados em latim. Nele, Alighieri democratiza o saber e o faz sob a forma de acepipes intelectuais capitosos, em santa continuidade da tradição, desde as origens da nobreza e do primeiro rei, que era agricultor e servente da natureza, homem humilde e sábio, o venerável da tribo. Em seu livro, que configura um curso intensivo e didático, eivado de informações e desafios, fala diretamente ao povo em língua vulgar.
Trata-se de uma obra ultrassofisticada, traduzida com apuro e fluência por Ciro Mioranza, perfeitamente atual e contemporânea; uma leitura necessária que engrandece o florentino. Distribui Alighieri o alimento que anima a alma e o intelecto, o Pão dos Anjos, reservado a poucos privilegiados por deterem o saber e a frequência regular do latim. Como uma reinvenção de Prometeu, quis tornar o conhecimento acessível a todos e o fez sob a forma de ágape cujo cardápio exalta os altos estudos, a tradição e a morfologia da nobreza, suscitando dúvidas e inquisições.
Legou-nos, além de “Divina Comédia” e “Banquete”, obras magnas que não podem faltar à cabeceira de um político: “Sobre a Língua Vulgar”, “As Rimas”, “Da Monarquia”, “Vida Nova”. Pertencia à mesma hierarquia intelectual de Maquiavel, autor além de “O Príncipe”, “História de Florença”, “A Mandrágora” e tratados diplomáticos. Anos de experiências na chancelaria do duque, tornaram-no um estrategista, um embaixador e negociador proeminente.
O intelecto é o pão de “Banquete”. Obra formativa e informativa, rica de cambiantes nuanças, reage àqueles que acreditam que alguém pode ser sábio sem ser bom. O homem é animal social, reitera esse discípulo de Aristóteles, ao viver em busca da perfeição. Portanto, tem a nos lembrar de Cícero que não se importar em saber o que outros pensam a nosso respeito não é somente típico de pessoa arrogante, mas dissoluta. Não é algo que se recomende, ignorar o conceito. Sintetiza a literatura: arte pela qual os homens se tornam imortais, a síntese do conhecimento pela qual os homens são famintos. A criação glorificada pelo amor.
Nobreza é virtude, reitera aqui e ali, Alighieri, como que didática e subliminarmente insuflando um conceito que aspira à perfeição. Como compartilhar o Pão dos Anjos com uma plateia de iletrados, em latim, a língua dos Tratados, do Governo, da Igreja e da Diplomacia. Através de “Banquete” quer levar-nos, por seu mérito, por um honesto, louvável e frutífero caminho.
Franklin Jorge, diretor de Redação do Navegos, é autor dos livros “Ficções Fricções Africções” (Mares do Sul; 62 págs.; 1999), “O Spleen de Natal” (Edufrn; 300 págs.; 2001), “O Livro dos Afiguraves” (FeedBack; 167 págs.; 2015), dentre outros.
SUMO POETA Acima, o escritor, filósofo e político florentino Dante Alighieri, considerado o primeiro e maior poeta da língua italiana e o mais importante pensador entre os séculos XIII e XIV; à esq., capa da mais recente edição do livro “Banquete”, originalmente publicado entre 1304 e 1307