*Éder Souza
Um dos bordões mais conhecidos dos movimentos de esquerda desde ao menos os anos 1970 é o “sexo anal contra o capital”. Esta linha de pensamento acredita que a sociedade capitalista é falocêntrica, ou seja, suas expressões de poder são simbolizadas pelo poder fálico masculino, perpetuando as supostas desigualdades artificiais instauradas pelo capitalismo como se fossem hierarquias naturais. Tal situação seria o principal fator subjetivo que torna os corpos dóceis para a dominação do capital, pois o sistema econômico vigente visa o lucro, portanto, a reprodução infindável de dinheiro assim como o pênis é o órgão reprodutor das classificações sociais e políticas assimétricas.
A única maneira de reverter o avanço do capital e subverter a lógica “perversa” do lucro é também subverter aquilo que lhe dá força simbólica, ou seja, substituir o protagonismo do falo pelo do órgão visto como sujo, excretor, que em nada contribui com o sistema reprodutivo do lucro financeiro ou das hierarquias, pois é estéril. Esse órgão é o ânus. “O falo é essencialmente social, o ânus essencialmente privado. Assim como o dinheiro criou o novo estado de circulação abstrata, o ânus proveu um novo modelo de privatização. Somente um ânus sublimado tem lugar na sociedade”, dizia o filósofo francês Guy Hocquenghem em um texto de 1972.
Javier Saez e Sejo Carrascosa vão ainda além ao defender o potencial revolucionário e disruptor da ordem capitalista e burguesa de outras práticas sexuais anais como o fist fucking, que consiste na penetração anal com as mãos e com o punho. Ambos dizem o seguinte sobre o assunto:
Precisamente, o que o fist faz é curto-circuitar toda a economia produtiva e reprodutiva: abandono do uso dos genitais e potencialização da mão em um “lugar inútil” (a mão, um órgão não reprodutivo, no cu, outro órgão não reprodutivo), a mão em um lugar abjeto por excelência, o cu. Uma mão e um braço que trabalham no lugar equivocado para abrir um corpo precisamente no lugar da perda (o cu somente produz merda, que não é útil para o capital). Com o fist, o braço, produtivo em termos de “mão” de obra é colocado em um lugar mais improdutivo.
Resumindo, a mão em um lugar privado, mas sujo e improdutivo como o ânus tem o poder simbólico de interromper a reprodução da cadeia produtiva capitalista ao relativizar o poder reprodutivo do pênis na produção do prazer humano.
A discussão de certos grupos de esquerda sobre o potencial anticapitalista e principalmente antiliberal da ressignificação do sexo anal deve sair do plano ideológico para observarmos a evolução concreta da liberdade das práticas sociais nas sociedades mais liberais e nas quais “um outro mundo é possível”, que é nas socialistas. Comecemos por esses últimos.
A questão da homossexualidade não era uma preocupação central para Marx e Engels, fundadores do socialismo “científico”. O que se sabe é que Engels era claramente homofóbico e isso não era algo incomum para um homem do século XIX, período este marcado pelo puritanismo sexual e moralismo acentuado, o que pode ser lido também como uma resposta a uma maior liberdade sexual do século XVIII, ao menos das classes mais abastadas.
Após a Revolução Russa de 1917 Lênin revogou as leis czaristas que criminalizavam a homossexualidade. Contudo, isso não significa que as perseguições de fato não ocorriam. As relações homoafetivas estavam bem distantes de serem vistas como naturais ou como uma mera “escolha pessoal”, como apontava o professor da Universidade de Moscou Grigóri Batkis.
Um exemplo marca a diferença entre o discurso e a prática na ditadura leninista. Em 1921, membros da marinha russa organizaram um casamento entre dois marinheiros, e o responsável pela festa foi o comandante Afanasy Shaur, que organizou uma festa extraordinária dentro das tradições heteronormativas russas, com a diferença que grande parte dos convidados estavam vestidos com roupas femininas. São Petersburgo jamais tinha presenciado algo semelhante. Quando a festa terminou, foi revelado que Afanasy Shaur era de fato um agente secreto que foi enviado para investigar os marinheiros, pois havia a acusação de que os contrarrevolucionários estavam destruindo a moral da Marinha através do incentivo à homossexualidade. Todos os convidados foram presos. Apesar de logo depois as acusações se provarem infundadas e todos os prisioneiros terem sido soltos, o caráter repressivo à homossexualidade no período leninista é bastante claro, em que pese a sua descriminalização e a propaganda do regime na época, que influencia até hoje algumas visões de militantes sobre tal questão no governo de Lênin..
No período stalinista as restrições aos LGBT aumentaram ainda mais e a homossexualidade voltou a ser criminalizada nos anos de 1933-1934. Os gays foram parar nos campos de trabalhos forçados, os gulags, em grande parte acusados de serem espiões dos países capitalistas. O estigma do gay enquanto “o outro”, “o espião”, o “infiltrado” que é instrumento do inimigo para enfraquecer as forças viris das Forças Armadas e da política, é uma teoria da conspiração comum neste período, que será partilhada pelos nazistas, norte-americanos, ingleses entre outros e explica em partes a manutenção das leis repressivas à homossexualidade masculina (e, em menor grau, a feminina) que então vigoravam na maioria dos países do mundo. Stálin qualificava a homossexualidade como “um vício burguês patológico”.
A criminalização aos homossexuais perdurou na Rússia durante todo o período soviético. Esta decisão foi revertida tão somente em 1993, após a queda do império soviético, quando houve uma tentativa russa de se aproximar do Ocidente. Além de milhares de mortos, as estimativas mais conservadoras apontam que 25 mil pessoas foram presas por acusações de serem homossexuais, as mais elevadas apontam 60 mil.
No Leste Europeu durante o período comunista, a questão LGBT variava de acordo com cada país. Enquanto na Romênia a descriminalização só ocorreu em 1996, a maioria deles fê-lo nos anos 1960, com notável exceção da Polônia, que o fez em 1932 na sua legislação e nunca foi revogado mesmo quando vigorava a constituição de influência fascista de 1935 e o comunismo. Na Alemanha Oriental, tal fato ocorreu um ano antes de sua contraparte Ocidental, em 1968. Contudo, apesar da descriminalização, foi introduzida uma idade de consentimento de 18 anos para as relações homoafetivas, à parte de que para as heteroafetivas era de 14 anos. O propósito dessa diferenciação tinha duplo viés: tratar os adultos com tratamentos psicológicos e controlar as escolhas sexuais dos jovens, para que não viessem a se tornar homossexuais.
Já China comunista, a tradição de relativa tolerância local à homossexualidade foi deixada de lado. A ditadura de Mao Tsé-Tung passou a persegui-los implacavelmente. Durante a Revolução Cultural os gays foram duramente perseguidos, qualificados de “doentes mentais” e enviados para campos de reeducação, onde realizavam trabalhos forçados e eram expostos a humilhações e violência física. Até 2001 os homossexuais eram oficialmente classificados como mentalmente doentes.
Se a abertura econômica chinesa colaborou para a diminuição desta perseguição, ela voltou a ganhar força em tempos recentes. O governo de Xi Jinping deseja purificar a China dos “males ocidentais”, e dentre estes males está incluída a homossexualidade. Neste ano, a título de exemplo, emissoras de TV foram proibidas de mostrar homens afeminados na sua programação, medida essa que está de acordo com o esforço do governo de banir a propaganda de “comportamentos sexuais anormais” na mídia. Os canais de organização da comunidade LGBT vêm sendo cada vez mais suprimidos. Ademais, o governo pressionou os organizadores de paradas LGBT de tal forma que se tornou simplesmente inviável realizar o evento. Grupos de discussão sobre temas caros à comunidade LGBT têm tido seus espaços físicos e nas redes sociais vigiados e fechados.
Em Cuba, a situação não foi diferente. A revolução “libertadora” comandada por Fidel resultou numa escalada imensa de opressão aos gays. “Jamais chegaremos a acreditar que um homossexual é capaz de encarnar as condições e os requisitos de conduta que permitiriam considerá-lo um verdadeiro revolucionário, um verdadeiro militante comunista”, declarou o ditador cubano em 1965. A homossexualidade era vista como uma degeneração burguesa que deveria ser extirpada da sociedade revolucionária, pois estes eram naturalmente contrarrevolucionários. Gays foram proibidos de se filiar ao Partido Comunista, demitidos dos seus trabalhos e jogados nos campos de concentração. O mais célebre desses perseguidos foi Reinaldo Arenas, autor da obra Antes que anoiteça. Arenas foi preso e torturado nos campos de concentração do regime. A este respeito, relatou o que viveu nos campos de concentração em Cuba: “Os gays não eram tratados como seres humanos, eram tratados como animais. Eram os últimos a saírem para as refeições, então os víamos passar por nós, e qualquer incidente insignificante era motivo para espancá-los sem dó.”
Se a situação teve uma sensível melhora após Fidel admitir e se desculpar pela perseguição aos gays durante a Revolução, as políticas homofóbicas de Cuba permanecem. Em 2019 a mudança constitucional para permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo foi vetada, e organizadores da Parada LGBT foram presos, conseguindo as autoridades comunistas impedir que a manifestação acontecesse.
Na Venezuela, terra do “socialismo do século XXI”, o governo faz vistas grossas aos constantes abusos da polícia aos grupos LGBT. Maduro tem pouco interesse em defender os direitos LGBT, e sempre se utiliza de ataques homofóbicos para atacar adversários, como quando ofendeu Henrique Capriles com baixos ataques homofóbicos, chamando-lhe de “maricón” e “loca”.
Curiosamente, todos os principais avanços dos direitos LGBT ocorreram nas democracias liberais. A partir dos anos 1960, os movimentos de contracultura ‒ surgidos na Europa e nos EUA ‒ passaram a contestar a moral tradicional e dar voz às diversas minorias sociais. Neste momento é que os gays começam a se organizar para reivindicar seus direitos. A rebelião de Stonewall foi o estopim de uma luta global que, ao longo de meio século, modificou o cenário social e político para os gays de grande parte do planeta. As pesquisas no campo das ciências sociais, psicológicas e médicas sobre a homossexualidade avançam desde os anos 1950 nos países centrais do capitalismo, o que permitiu que em 1973 a homossexualidade fosse retirada da classificação de “perversão”, “doença” ou “distúrbio”. Tal fato abriu caminho para a descriminalização em diversos países, até mesmo em alguns socialistas, como o caso da Alemanha Oriental.
Na última década do século XX e no XXI, os movimentos que visavam a igualdade política e social das minorias se fortaleceram dentro das democracias liberais. Isto fez com que direitos dos LGBT avançassem rapidamente. Em 2001 os Países Baixos foram os primeiros a reconhecerem o direito de união civil, seguidos pela Bélgica, Espanha, Canadá, África do Sul, Noruega e Suécia. O Brasil reconhece o direito ao casamento em 2010. Hoje a maior parte do mundo ocidental reconhece grande parte dos direitos LGBT, e nos Estados liberais do Oriente os avanços dessas questões se fazem presentes. Taiwan foi o primeiro país asiático a reconhecer a união civil, e o Japão está neste mesmo rumo ao definir que o não-reconhecimento de tal direito é inconstitucional.
A pergunta é: o que faz com que haja diferenças entre a aceitação e o avanço dos direitos LGBT nas democracias liberais e nos países de tendência socialista? Vou lançar algumas hipóteses para tentarmos elucidar tais questões. A primeira questão importante é a própria fundamentação ideológica de tais sociedades. Nas revoluções socialistas é exigido que o interesse individual seja submetido ao coletivo, inclusive o comportamento sexual. Temos de lembrar que as revoluções são processos violentos e, portanto, o protótipo do bom revolucionário sempre foi o operariado e o homem armado. Neste contexto a homossexualidade é vista como “afeminação”, o que está associado à fraqueza, sobretudo pelo caráter intrinsecamente machista do comunismo. Então, ironicamente, na questão do comportamento sexual, as revoluções tendem a reforçar os estereótipos de gênero.
A própria constituição centralizada dos governos socialistas tende a suprimir as liberdades individuais em nome da defesa da revolução. A liberdade está subordinada às necessidades revolucionárias, posto que o principal objetivo é fazer com que o socialismo sobreviva, ainda que às custas de uma repressão intensa. Neste cenário, a construção de espaços autônomos da supervisão do Estado se torna muito mais difícil porque é perigoso. Qualquer contestação à ordem é automaticamente considerada “antirrevolucionária”.
Em contrapartida, nas democracias liberais é possível construir as lutas pelos direitos LGBT porque é o pressuposto de tais sociedades a preservação de direitos à liberdade. É pilar fundamental o entendimento de que amplos setores poderem professar crenças e morais diferentes. Um conservador religioso pode conviver com um revolucionário socialista porque estas sociedades inferem que o conflito de ideias é inerente à liberdade. Tais situações conflituosas devem ser resolvidas dentro das instituições, sejam elas as do Estado (tribunais, parlamento), ou nas privadas e intermediárias (igrejas, sindicatos, associações coletivas locais, mercado, empresas). A possibilidade de que grupos de interesses diversos possam se organizar em grupos autônomos da tutela estatal para reivindicar reconhecimento estatal de suas pautas, mesmo que ela confronte os ideais da maioria, é o que torna possível as transformações nos costumes e práticas da sociedade. Foi assim que nos últimos 150 anos as mulheres puderam conquistar amplas liberdades como o direito ao voto, o reconhecimento da sua plena igualdade. Os gays não fogem a tal regra.
O conceito de liberdade que rege ambos os modelos sociais é que faz a diferença. Em uma democracia liberal, a liberdade significa não restrição, a possibilidade do indivíduo ser reconhecido como um agente autônomo passível de não sofrer limitações em suas ações por forças externas a ele, incluindo o Estado. A sociedade socialista subordina a liberdade aos interesses do coletivo. Ali, o que deve ser livre sobretudo é o corpo político, não o indivíduo. As amplas liberdades individuais são vistas com desconfiança por comunistas porque o risco é que este indivíduo autônomo se torne despolitizado, pois não subordina seus interesses à polis (comunidade), sim ao mero cálculo dos ganhos particulares.
O mercado, em especial, é força sensível às demandas sociais. Isto se dá porque por sua natureza necessita da adesão e identificação das pessoas a determinados produtos para que os indivíduos tenham o impulso de os consumir. Portanto, este consumo está imbuído de valores. Não à toa que a demanda social por igualdade de gênero e raça pôde encontrar nas forças de mercado não só um aliado, mas uma ferramenta fundamental para a transformação dos valores sociais. Várias marcas trazem em suas propagandas temas sociais e as empresas valorizam cada vez mais a temática da diversidade, porque encontram nela uma oportunidade de crescimento de suas marcas.
Nesse sentido, o mercado é uma força muito mais revolucionária do que as revoluções armadas do modelo comunista. E muito em função de sua atuação a diversidade sexual, incluindo a diversidade de práticas sexuais, encontram pessoas dispostas a fornecer produtos e serviços que se encaixe nos gostos de certos públicos. Dificilmente se encontrará tantas casas de swing, sadomasoquismo ou saunas gays nos países socialistas quanto nas democracias liberais. Isso é, se existirem tais espaços nos países socialistas sem que tenha repressão estatal, o que é duvidoso. Raramente práticas sexuais diferenciadas como o fist fucking poderão encontrar espaço livre para a sua prática, ou mesmo a venda produtos que facilitem que o fist seja realizado, e muito menos ainda poderão ser tema de pesquisa em suas universidades. Ou alguém imagina com seriedade a possibilidade de estudar tais temáticas em uma universidade em Havana ou Beijing, ao menos com a liberdade que se pode fazer nas democracias liberais?
Um outro mundo para os gays e outras minorias foi e é possível, mas não graças aos regimes socialistas. A própria esquerda, que teve e tem papel fundamental na luta e consolidação das liberdades às minorias, só consegue avançar com as suas causas nas democracias liberais, jamais em países socialistas. Possivelmente falta o entendimento do que é democracia liberal em seus termos políticos, pois geralmente confundem com “capitalismo” e “neoliberalismo”, termos com sentidos completamente diferentes, que não cabe explicar aqui neste artigo.
Em resumo, quem queira continuar praticando livremente o sexo anal com o maior grau de liberdade possível, deve defender as democracias liberais e a liberdade do capital. Deveria fazer sexo anal pelo capital. Ao menos, poderá encontrar gel lubrificante facilmente na farmácia mais próxima de sua casa, sem riscos de ser perseguido e morto pelo Estado por causa de seu prazer recôndito.