*Marcelo Alves Dias de Souza
Como eu disse aqui na semana passada, do romance Maigret no tribunal (de 1960), o que mais me tocou foi a capacidade do seu autor, o belga Georges Simenon (1903-1989), de nos mostrar como o ambiente de uma sala de audiências, na Justiça criminal, é esquematizado e asfixiante.
Não que isso tenha sido uma surpresa para mim.
Além de maravilhoso escritor, Simenon, eu já sabia, não “passou pela vida em brancas nuvens”. Conheceu altos e baixos até que, com oitenta e tantos anos, “em plácido repouso adormeceu”, como diria o nosso Francisco Otaviano (1825-1889). Ele frequentou a Justiça criminal francesa. Não só como repórter forense, mas também na qualidade de réu, como quando acusado de simpatizar ou mesmo colaborar, durante a 2ª guerra mundial, com o nazismo (tendo sido interditada a publicação de suas obras por alguns anos por decisão judicial, se não estou enganado). Isso sem falar nos escândalos e nos tumultuados divórcios de praxe.
No mais, talvez eu até já tivesse sentido essa sensação descrita por Simenon (talvez todos nós que fazemos a “Justiça”, juízes, promotores, advogados etc., tenhamos), de formalismo anacrônico e asfixia, mas nunca havia parado para refletir sobre ela devidamente.
Antes de qualquer coisa, os que vão ali ocasionalmente (réus, vítimas e testemunhas, sobretudo), não acostumados àquele ambiente opressor e àquela linguagem empolada, têm, já havia percebido, um olhar fixo, as mãos tremulas, mal disfarçando o medo do momento solene de suas inquirições. Para eles, quanto mais rápido aquela “tortura” acabar, melhor. E, assim, como nota o criador do Comissário Maigret, fatos e depoimentos muitas vezes não se encaixam.
É verdade que alguns juízes (também alguns promotores), reconhece Simenon, têm longa experiência com casos criminais. Em anos de carreira, terão inquirido, como réu ou testemunha, centenas e mais centenas de homens e mulheres, de todos os tipos. Isso lhes dá, somado ao conhecimento que têm da vida, certo “domínio” da sala de audiências ou do tribunal do júri, onde, pela primeira e (em regra) única vez, vêm os verdadeiros protagonistas da trama (os réus, as vítimas, as testemunhas). Mas uma boa parte dos magistrados (assim como dos promotores), talvez a maioria com a magistratura tão jovem que temos, não tem essa experiência de vida. Como diz Simenon, seus conhecimentos do mundo permanecem teóricos.
De toda sorte, dos indivíduos envolvidos no caso (réu, vítima, familiares, testemunhas), da vida vivida deles, juízes e promotores, experientes ou não, pouco chegam a conhecer. Só os veem fora de suas vidas pessoais, na atmosfera higiênica das salas do fórum. Eles trabalham com seres (humanos?) já esquematizados: o réu, a vítima, a testemunha. Ao final, lidam apenas com as frases e as palavras daquele dossiê, que chamamos de autos, que eles interpretam, à semelhança do Quixote, com fim de comprovar o que acharam bonito nos livros. Até porque, muitos dos fazem a Justiça vivem isolados do mundo, numa ilhota só deles, na falsa suposição de preservarem a dignidade da função ou por se acharem melhor que os outros.
Por fim, talvez o mais importante: um julgador dispõe de um tempo curtíssimo para lidar com um caso. Meses? Semanas? Na verdade, levando em conta os inúmeros outros afazeres, são dias, quiçá horas. Muitas vezes ele está pressionado pela imprensa, pela opinião pública, além de submerso em formalidades burocráticas sem fim. E a instrução processual (testemunhos, interrogatórios etc.), assim, não passa de um condensado de uma ópera já (mal) encenada perante a Polícia Judiciária.
Talvez aí esteja a explicação para o fato de o Comissário, em “Maigret no tribunal”, não avisar os seus comandados de um desfecho que sabia provável, quase certo, deixando que o inocente erroneamente acusado mate, longe da sala de audiências, o culpado que ardilosamente estava impune.