*Alexsandro Alves
PRELÚDIO
Augusto Aras, da Procuradoria Geral da República, prometeu a Ary Berguer, vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil e presidente do Instituto Memorial do Holocausto, que se mobilizará para impedir que Roger Waters vista suposto uniforme nazista em seu show de despedida, “This Is Not a Drill”, que chegará ao Brasil ainda neste ano, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba e Porto Alegre. Segundo Aras, os Ministérios Públicos Federais localizados nessas capitais serão instados para que tomem providências antecipadas para que Waters seja proibido de usar o uniforme. Essa promessa ao sionista Berguer soma-se às ameaças que o músico sofre na Alemanha por parte de outras associações sionistas. A perseguição e a censura escancaradas contra Waters partem do apoio do músico aos palestinos e às críticas que ele sempre desferiu contra o tratamento desumano de Israel ao povo palestino. Mas “The Wall” não é fascista.
ATO I
Em 1992 eu assisti, pela primeira vez, ao musical “The Wall”, em VHS. Fiquei maravilhado com a música, com seu poder violento de explodir, através dos acordes de guitarras, ideias e sentimentos. O rock, quando de fato pensado enquanto música, é tanto uma arma política quanto estética, e sem dúvida harmoniza com os desejos revolucionários e destruidores da ordem tradicional que a sociedade burguesa, para sua manutenção, aprendeu a exaltar e a calar, a depender da necessidade, e que deve fazer parte de toda alma jovem (mas precisamos crescer). O rock, com sua saldável agressividade, onde os acordes são criados a partir de murros e pancadas nos instrumentos, se tornou a maneira perfeita, a válvula de escape perfeita para odiar o sistema, ao mesmo tempo em que crescemos e formamos famílias, arrumamos emprego, votamos, nos filiamos a partidos políticos e agremiações religiosas, criamos filhos! A rebeldia do rock está no script.
“The Wall” é sobre a crise existencial de Pink, um menino que perdeu a figura paterna, seu pai morreu na guerra, ele torna-se um astro do rock que mergulha nas drogas e tem delírios totalitários – ele imagina ser um ditador fascista. “Run Like Hell”, uma das melhores músicas da obra, mostra Pink em um arroubo fascista, com sua tropa destruindo restaurantes, matando homens negros e estuprando mulheres negras. Embora seu personagem central seja fascista, a obra como um todo é antifascista. Os adereços, gestos e encenações, remetem à regimes autoritários enquanto crítica. A crise existencial de Pink nunca termina: os acordes finais são os acordes iniciais. Por que não termina? Talvez Waters queira nos dizer o mesmo que Brecht já dissera: a cadela do fascismo sempre está no cio. E é essa cadelinha suja que abana a cauda agora para Waters. O músico está prestes a sentir a mordida amarga dessa vagabunda. Onde? No Brasil.
Esteticamente, “The Wall” emula as grandes manifestações populares das décadas de 20, 30 e 40 europeias; os personagens dançam em linha reta, fazendo coreografias com a saudação nazista, ao mesmo tempo em que se vestem de casacos e coturnos semelhantes àqueles usados por Hitler, Mussolini ou Stálin. O símbolo na braçadeira de Pink e seus partidários, são nas cores vermelho, azul e preto – as cores do Partido Nazista, mas o símbolo são dois martelos entrecruzados em “x” – o martelo remete ao comunismo. A predominância de iluminação por cima, como holofotes, uma maneira de se remeter às perseguições de um estado totalitário, marcam muitas das cenas centrais da produção; porém a maneira hitleriana de Pink falar se perde quando ele canta, mesmo que cante em um comício: talvez seja questão de uma revisão na partitura que nunca será feita. Waters poderia se inspirar na escrita wagneriana para Klingsor, personagem de “Parsifal”, obra de Wagner.
Em muitos aspectos “The Wall” envelheceu mal. A crítica ao totalitarismo permanece atual, porém algumas das formas de como essa crítica surge ao longo da obra se mostram hoje equivocadas, no mínimo. Tanto a letra quanto a cena de “Another Brink In The Wall, Part Two”, a famosa “Hey, Teacher!”, que se tornou a música símbolo da obra como um todo, à maneira de uma ária de ópera que resume na lembrança dos amantes do gênero uma obra inteira, por exemplo, “Casta Diva” em “Norma”, de Bellini, a canção se perde em cenas que, hoje, são assustadoras: professores sendo assassinados por alunos que cantam em coro que não precisam de educação. Há um outro detalhe: a obra não deixa claro se a cena é um desejo de libertação de Pink ou se faz parte de sua alucinação totalitária. Desejável a primeira opção, mas a segunda não fica totalmente afastada. A ideia de que a educação é prejudicial e controladora, e seu símbolo seria um homem brutal, faz parte das ideias de maio de 68.
Aquele “movimento social” dos jovens da classe média arrumada parisiense que saíram às ruas quebrando tudo contra o patriarcado e a favor do trabalhador. O tempo se encarregou de provar o contrário. Aqueles jovens que se tornariam hippies, nos anos 80 estavam de novo protestando, desta vez contra a URSS e derrubando o muro, o de Berlim! E muitos deles se tornaram yuppies – arrumaram emprego e constituíram família. Se adequaram à ordem capitalista – mas sempre protestando! Hoje, na modernidade, uma hashtag puxa a revolução nas redes – embora que a maioria dos usuários de computador e smartphones tenham, ou desejem, uma boa educação e um bom emprego. “Hey, Teacher!” está errada. Assim como outros momentos ao longo de “The Wall”. Mas isso não invalida a luta antifascista de Waters. Assim como não invalida a mensagem, também antifascista, de sua obra mais conhecida. Então como hoje esse músico é perseguido como se fosse fascista?
Continua…