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Sobre música e poesia na filosofia

O pensamento filosófico sobre questões relativas à música e à poesia a partir de escritos de filósofos e compositores.

*Alexsandro Alves

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Cena de Lulu, de Alban Berg

 

Um assunto pelo qual sou muito interessado e vez por outra encontro em redes sociais algumas entradas interessantes – e esse tema então torna a dar volta em meus pensamentos -, é a relação entre música e poesia. Recentemente, em um grupo de Whatsapp, me deparei novamente com o tema.

Essa relação assume, no decorrer do tempo, muitas variantes e pensamentos diferentes.

Podemos pensar essa relação, na música erudita, a partir da filosofia estética, uma disciplina da filosofia. Assim, conheceremos o pensamento de filósofos como Hegel sobre o assunto, por exemplo, no trecho a seguir:

Cantos, árias de óperas, textos de oratórios etc. podem, por conseguinte, no que se refere à execução poética mais precisa, ser insuficientes  e de uma certa mediocridade; o poeta, caso o músico deva conservar livre espaço de jogo, não deve querer ser admirado como poeta. Segundo este lado, particularmente os italianos tiveram grande habilidade, como, por exemplo, Metastásio e outros, ao passo que os poemas de Schiller, que também não foram feitos de modo algum para tal finalidade, se revelam como muito pesados e inaproveitáveis para a composição musical (…) Por outro lado, contudo, este conteúdo não pode ser novamente de profundidade demasiadamente pesada e filosófica, como, por exemplo, a lírica de Schiller, cuja amplidão grandiosa do pathos sobrevoa a expressão musical dos sentimentos líricos. (Curso de Estética, volume III, São Paulo, Edusp, 2002, p.288, 330).

Hegel fala que a boa música não precisa de um bom texto. Na verdade, o poeta que escreveu o texto musicado deve ficar escondido, sua poesia não precisa ser boa, basta mesmo ser medíocre. Ele fala dos libretos das óperas italianas, sempre muito criticados por compositores alemães e franceses. Para Hegel, a grande música, caso precise de um texto, deve se acompanhar de textos banais.

Hegel chega mesmo a afirmar que a poesia de Schiller é impossível para a música. Podemos questionar de que música o filósofo pensava; e não podemos deixar de perceber, com grande alegria e ironia, que Beethoven vai justamente musicar um poema de Schiller em sua Nona Sinfonia! Beethoven era contemporâneo de Hegel e sem dúvida lia e discutia seus textos. Beethoven sabia o que estava fazendo e com quem estava dialogando, e sabia que dizia para Hegel: você está equivocado

Schopenhauer é outro filósofo cujas ideias sobre música desembocam nessa questão entre a música e a poesia.

A metafísica da música de Schopenhauer eleva essa arte a um novo patamar: ela é a Vontade em si. O próprio e perpétuo movimento do Universo.

No entanto, é, para mim, muito constrangedor que o filósofo, quando exemplifica suas ideias musicais em seu livro principal O mundo como Vontade e Representação, nunca cite Beethoven; ele cita a ópera italiana, na figura de Rossini. Assim como Hegel, Schopenhauer parece dar as costas para o grande músico de Bonn.

Nietzsche conduzirá sua estética a partir de Schopenhauer e Wagner. O primeiro livro importante do filósofo, O nascimento da tragédia no espírito da música, contém dois conceitos que se tornariam basilares para a estética, Apolíneo e Dionisíaco. Através dos deuses gregos Apolo e Dionísio, Nietzsche contrapõe os aspectos racionais e irracionais da arte dos sons a partir de sua experiência com o drama wagneriano. Esse livro surge no caminho trilhado, alguns anos antes, por Wagner, quando este escreveu Beethoven, um ensaio sobre o Sublime e a Beleza na criação e na contemplação estética.

Heidegger, no primeiro volume de seu Nietzsche, afirma que tanto Nietzsche quanto Wagner acreditam no poder irracional  da arte. Seria uma espécie de Leviatã demoníaco e incontrolável. A diferença, segundo Heidegger, é que Wagner busca compreender a irracionalidade, é cauteloso; Nietzsche, ao contrário, se joga inteiramente e sem retorno.

Essa diferença é interessante e, para mim, é uma explicação estética para o rompimento dos dois, que tem a ver com a relação música e poesia.

Wagner, como compositor essencialmente de óperas, não abandona o significado, as definições de mundo. A palavra, por fim. Nietzsche assegura que o caráter irracional da música não pode ser dominado.

Em outras palavras, a música é maior do que a poesia. Também Mozart concordaria com Nietzsche, mas com certeza não chegaria às conclusões perturbadoras que a filosofia do martelo encerram.

Porém, se Wagner conclui suas questões diferentes de Nietzsche, não significa, necessariamente, que o mestre de Bayreuth acorde que a poesia seja maior do que a música. Ao menos no aspecto literário isso não se dá, não é a poesia em si, mas a poesia adequada ao drama:

Sabemos que não são os versos do poeta, seja ele Goethe ou Schiller, que podem determinar a música. Este poder é só o drama que possui, não o poema dramático, mas o drama que se representa realmente diante de nós, como um reflexo da música que se tornou visível, no qual a palavra e o próprio texto pertence à ação e não mais ao pensamento poético. (WAGNER, Beethoven, Porto Alegre, L&PM, 1987, p.77)

Notem a sutileza estética de Wagner: ele afirma que a poesia não pode determinar a música; mas isso não significa que a música seja indomável, na linguagem de Schopenhauer, a Vontade; Dionísio encontra Apolo, em Wagner, no drama; esse elemento pode determinar a música.

No século XX, compositores encararam essas questões das mais diversas formas.

Richard Strauss, indiferente a Hegel, pegará um dos grandes textos da literatura de Oscar Wilde, Salomé, e a partir de uma tradução alemã, o colocará quase integralmente em ópera, em sua Salomé, de 1905; em 1909, a partir de uma versão da Electra, de Sófocles, escrita pelo poeta simbolista Hugo von Hofmannsthal, estreará Elektra; em muitas de suas óperas, como Ariadne em Naxos, de 1912, ou Capricho, de 1942, Strauss usa os personagens para simbolizarem essa oposição e ligação entre música e poesia.

Alban Berg ainda vai mais longe. A peça inacabada de George Büchner, Woyzeck, Berg organizará e a partir de sua finalização, comporá a ópera Wozzeck, em 1925; mais tarde, os densos textos dramáticos do expressionista alemão Frank Wedekind, O espírito da terra e A caixa de pandora, lhe serviriam para compor Lulu, que estreou, em sua versão completa, em 1979.