* Renato de Medeiros Jota
Quando aconteceu a primeira Guerra mundial, falou-se que os motivos eram a monotonia da paz em que estavam as nações, os conflitos existentes eram meramente de ordem racial e de classe, todas envolvidas numa dialética de constante conflito em que ninguém desejava dá o primeiro passo para rompe-la. Mas isso não iria durar muito, a paz vivia sobre os rumores da palavra guerra e ela aconteceu através de um tiro e daí em diante todo um mecanismo de violência foi acionado e então a guerra veio, ela não seria rápida como se pensou. Terminado o primeiro conflito, ou assim se pensou.
O fim da primeira Guerra não curou as feridas tanto internas como externas dos perdedores, e uma guerra de quase uma década não foi suficiente para aplacar a violência humana e novamente os recalques represados por poucos anos foi capaz de evitar novamente a segunda guerra. Esse pequeno resumo mostra que uma guerra é muito mais do que mostrar o heroísmo e culto a personalidades geniais. Uma guerra é basicamente a história de uma situação limite, a própria guerra é um personagem que deve ser considerado, talvez um fenômeno natural criado à princípio por meio artificiais, por mãos humanas. Talvez por isso os quadrinhistas volta e meia gostem de “viajar” por esses cenários retrocedendo ao passado ou projetando-o para o futuro.
Nesse momento, recorro a lembrança quando evoco dois personagens sargento Rock e sua companhia moleza e outro As inimigo, ambos conduzidos pela dupla Joe Kubert e Robert Kanigher pelo o selo Dc, nos leva a constatar que é o palco da guerra a grande atração das histórias e não só o personagem. Posso me lembrar também de outros exemplos de quadrinhos de Guerra como Cannon de Wallace Wood, Maus de Art Spiegelman, Halo Jones de Alan Moore e Ian Gibson, ZDM de Brian Wood/ Riccardo Burchielli/ Ryan Kelly, Dreadstar de Jim Starlim entre outras hqs que tem o tema guerra como palco obrigatório em que os conflitos desfilam em sua narração.
Mas o que gostaria de ressaltar aqui sobre o quadrinho de Guerra é a sua capacidade de destacar o aspecto humano envolto no conflito, afinal, o ser consciente de sua possibilidade de morrer ou não, o verdadeiro paradoxo da teoria do gato de Schrödinger está diante do palco da guerra e mostra a possibilidade da morte. Todos os que gostam de temas dramáticos apelam para situações extremas de violência e nesse momento entra em campo o espaço da guerra. Ressalta-se aqui o espaço do discurso a área de atuação, o palco do conflito é a guerra. O assunto é apenas o mote para os diversos conflitos que percorrem as páginas do quadrinho. A dor da perda de companheiros nos campos, os conflitos com o poder, o processo de desumanização diante do conflito tudo isso contribui para atrair e prender a atenção do leitor. Vários quadrinhos mostram o viés psicológico de um conflito armado, na qual nas páginas dos quadrinhos ninguém é o herói ou se é, logo podemos ver a ambiguidade dos personagens desqualificando esse pensamento.
Em algumas edições que li recentemente sobre personalidades da guerra escritas ficcionalmente nos quadrinhos podemos encontrar uma interpretação diferenciada do conflito como o caso da primeira guerra mundial no Aos inimigos pintada e roteirizada por George Pratt. É notório a investigação do artista por compreender como chegamos a um estado tal que numa guerra esquecemos as noções básicas de civilidade e agirmos apenas instintivamente, procurando sobreviver. Segundo Pratt: “numa guerra somos um nervo exposto” diz o personagem Von Hammer, o barão vermelho, ao personagem Mannock um jornalista que participou da guerra do Vietnã. A busca desse último é compreender, através de quem como ele participou de um conflito de proporções apocalípticas e sobreviveu. O personagem procura entender como alguém consegue conviver com as cicatrizes deixadas na alma pelo conflito. Procura localizar os motivos que fazem os seres humanos se agredirem uns aos outros, nutrindo tanto ódio sobre aqueles que nem conhecem. A guerra é um ato puramente irracional e antiético.
Horkheimer e Adorno, filósofos da estética e da linguagem refletem sobre como foi possível a primeira e a segunda guerras acontecerem e permitir tantas ações atrozes. As conclusões tiradas pelos dois filósofos de Frankfurt é que as guerras acontecem quando a razão e o diálogo cessam. As guerras são antiéticas e assimétricas quem sofre em última instância é a verdade além da razão. O problema de uma guerra esta em que ninguém a vence, todos perdem em um conflito. Quando os criadores dos quadrinhos objetivam centralizar sua atenção no cenário da guerra, o desejo é procurar fazer uma geografia do terreno ou do psicológico, pretendendo entender os motivos e o absurdo da guerra.
Numa análise filosófica sobre os quadrinhos podemos refletir a respeito das causas da guerra e seus dramas psíquicos decorrente do morticínio na Europa. As suas consequências, a fome, miséria, escombros tanto de estrutura quanto da psicologia humana, nos convoca a pensar sobre o absurdo desses conflitos que ainda ceifam tantas vidas, de soldados quanto de civis. Nos leva a buscar os motivos que nos inclina para o conflito, geralmente, esses motivos mesquinhos e egoístas, não são valores elevados e altruístas. Essa reflexão das guerras passadas, também podemos projetar para as guerras atuais sendo pioradas pela tecnologia e o princípio de desumanização e a impessoalidade das mortes por drones e bombas guiadas que matam pessoas/inimigos através de operadores localizados em outro país conforme Michael Walzer denuncia. Nunca se matou e destruiu tão bem e em proporções nunca antes pensadas pela humanidade…nosso destino está por um fio.
Isso nos leva a perceber que podemos ver nas páginas de As Inimigo: um poema de Guerra de George Pratt uma reflexão sobre as sequelas da guerra sobre a pessoa de seu Avô. Um soldado que acreditava na guerra como Von Hammer, entretanto, à medida que o conflito e as mortes vão avançam as ilusões de seu avô e também de Von Hammer vão perdendo o significa, a guerra também perdeu seu glamour. Na introdução do quadrinho Pratt revela os motivos de sua inquietação a respeito do significado de uma guerra sobre a percepção de mundo de seus antepassados. Fazendo isso ele acredita que compreenderá também a si mesmo enquanto ser humano e como artista ao mesmo tempo que busca entender a situação que leva a esse conflito. Não importa as armas, a tecnologia, a informação, ou qualquer tipo de justificativa para uma guerra, o que se perde são vidas, sentimentos. Nos transformamos em um arremedo de tudo o que negamos em vida, a brutalidade e desumanidade, enfim, deixamos de nos preocuparmos com o outro e com isso em nós também. É impressionante perceber que um assunto tão delicado e tantas vezes explorado continua sendo tão relevante.
Renato de Medeiros Jota – É pesquisador em Quadrinhos