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Tannhäuser em Paris

Um artigo sobre a Abertura da ópera Tannhäuser, de Richard Wagner, estreada em Dresden, e que teve uma nova versão para sua estreia em Paris.

*Alexsandro Alves

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I. Os bastidores da produção

Paris foi uma pedra no caminho de Wagner, nela tropeçou duas vezes, sendo o segundo tropeço maior que o primeiro.

No fim da década de 1830 e início da de 1840, ele viajou para a Cidade Luz em busca de fama. Havia terminado Rienzi e seus planos eram que essa ópera fosse estreada no Òpera.

Passou fome nessa cidade.

Para sobreviver, vendeu seu libreto do Navio Fantasma, sua obra seguinte, para o Òpera, mas o teatro não permitiu que Wagner o musicasse. A música coube ao compositor francês Louis Dietsch. Essa partitura se perdeu, assim como o prestígio de Dietsch.

De volta à Alemanha, nunca esqueceria as humilhações que sofreu em Paris. Compõe seu Navio Fantasma que estreia em Dresden, em 2 de janeiro de 1843. É a primeira ópera wagneriana. Eu fico por vezes imaginando como seria a música esquecida de Dietsch, é uma curiosidade que muitos wagnerianos têm, um texto de Wagner musicado por outro compositor.

Wagner relutou em vender sua história para o Òpera, mas no fim, resolveu fazer uma cópia e a entregou para o teatro.

***

O segundo momento de Wagner em Paris ocorre na década de 1860. Agora, como um compositor que lidera a vanguarda da nova música, graças à composições como A valquíria e Tristão e Isolda.

Desta vez, Wagner espera que Paris se renda ao seu Tannhäuser.

Saiu do teatro a ponto de ser agredido por uma turba enfurecida. Essa turba destruiu o teatro, ameaçou os artistas, quebrou os cenários e praticamente expulsou Wagner de Paris.

O que ocorreu de fato?

Havia dois problemas, nessa época, com a permanência de Wagner na cidade. Um estético e outro, político.

Era hábito dos membros do Jockey Club, ricos empresários judeus, de impor nas apresentações de ópera, um balé no segundo ato da apresentação.

Por que exatamente no segundo ato e não poderia ser em outro ato?

As apresentações se iniciavam às 19 horas, exatamente na hora em que esses empresários estavam jantando. Após o jantar, saíam em direção ao teatro, lá chegando pelas 20 horas. Como Paris sempre foi fascinada por balé, eles exigiam que a cena de balé ocorresse sempre no segundo ato para que fosse possível assistir a ela.

Porém Wagner não via como dramaticamente coerente um balé no segundo ato da Tannhäuser. No segundo ato dela ocorre um sarau – ou seja, recitação de poesias.

Mas Wagner aproveitou para inserir o balé no primeiro ato, por quê? Porque o primeiro ato se passa no Reino de Vênus, e um balé, de caráter erótico entre ninfas e elfos, cairia muito bem como um desenvolvimento desse reino. E assim foi.

Quando os empresários, que bancavam o teatro, chegaram, o balé já estava no fim. Não acreditaram no que tinham presenciado: suas bailarinas e seus bailarinos, muitos dos quais seus amantes, se despediam da cena enquanto ainda sentavam nas poltronas.

E também havia, nessa atitude de Wagner, um caráter político. Os franceses e os alemães sempre se espetaram entre si. Na época, os ventos de uma nova guerra entre a França e a Alemanha já sopravam. Essa nova guerra, sob a liderança de Bismarck, unificaria a Alemanha.  Wagner também era protegido da princesa Pauline von Metternich, nobre austríaca que em alguns círculos da capital não era bem conceituada. Ela foi patrona de muitos artistas modernos e seu comportamento era tido como inadequado: fumava em público e fazia reuniões de mulheres para fumarem cigarros e charutos.

Além disso, o livro O judaísmo na música, escrito antissemita de Wagner, já havia chegado às mãos dos judeus do Jockey.

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Houve quem defendesse Wagner?

Charles Baudelaire.

O escritor das Flores do mal escreveu artigos em jornais que alguns meses depois foram reunidos em um livro chamado Richard Wagner e Tannhäuser em Paris. O mais eloquente elogio a Wagner anterior ao Nascimento da tragédia, de Nietzsche.

Nesse livro, Baudelaire detalha a importância de Wagner para a arte moderna, em especial para a música. Esmiúça seus próprios sentimentos sobre essa música, e faz análises das obras wagnerianas que conhecia até então. Também aproveita para alfinetar o reacionarismo dos membros do Jockey e do público parisiense.

Outro que saiu em defesa de Wagner foi o compositor Charles Gounod. Ficou famosa sua frase: Como eu queria um fracasso desses!

No entanto, o compositor Héctor Berlioz se deliciou com a recepção negativa. Mal sabia ele que estas mesmas figuras do Jockey, alguns meses mais tarde, fariam sua obra-prima As troianas fracassar e pelos mesmos motivos da obra wagneriana: originalidade e genialidade.

II. A música da abertura

A abertura é um gênero mais fechado em termos de regras do que um prelúdio, que tem caráter mais livre. É da abertura de ópera que se originou a sinfonia no século XVIII, aliás, a abertura de ópera era muitas vezes chamada de sinfonia. É uma forma em três partes, geralmente com dois temas, sendo a parte do meio contrastante com as outras duas da ponta, que devem ser iguais. Por exemplo, uma parte inicial lenta, seguida por uma mais rápida e concluindo com a reexposição da primeira parte lenta, ou o contrário: rápido-lento-rápido.

Podemos dizer que a Abertura da ópera Tannhäuser segue de maneira bastante livre essa forma.

A questão é que há muitos temas nessa abertura e seu tamanho por si só, que é incomum para uma abertura de ópera, durando cerca de 14 minutos, geralmente não se chaga à metade desse tempo em outras aberturas. O maestro Diogo Pacheco, apresentador dos Concertos Internacionais, programa de música clássica exibido pela Rede Globo de 1991 até 1995, afirmou que essa abertura é cavalo de batalha de toda a grande orquestra. Sem dúvida, o tratamento que Wagner confere à orquestra em suas óperas é amplamente sinfônico.

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Agora, uma analise da abertura a partir do vídeo da Orquestra da Rádio de Frankfurt, no final do artigo. A abertura inicia com uma melodia para oboés, fagotes e trompas (0:05, no vídeo); a trompa é um instrumento da família dos metais, mas Wagner anota a parte da trompa sempre juntamente com a família das madeiras, é como se de fato o maestro entendesse esse instrumento com mais semelhança com os oboés, por exemplo, do que com os trombones.

A melodia iniciada por estes instrumentos em 0:05 é  a melodia cantada pelos romeiros, peregrinos que caminhavam até Roma em busca do perdão papal. Na ópera, ela ressurge no terceiro ato sob as palavras Beglückt darf num dich, o Heimat, ich Schauen (Feliz, ó pátria, posso agora olhar-te).  É uma música de caráter sereno, bastante tranquila; em seguida, em 0:58, entram os violoncelos e as violas com um novo motivo, o do Arrependimento, cantado pelos peregrinos e por Tannhäuser sob as palavras Ach schwer drückt mich der Sünden Last (Ah, o peso dos meus pecados é forte) no primeiro ato. Essa melodia nas cordas graves é mais intensa do que a primeira e ganha contornos mais expressivos com a entrada dos violinos, em 01:28. As madeiras retornam em 01:55, e os violinos iniciam as semicolcheias em tercinas em 02:06, quando em 02:09, temos o primeiro clímax da partitura: os trombones repetem o tema dos peregrinos (Beglückt darf num…), mas dessa vez o tom é forte e solene, acompanhado pelas tercinas nos violinos. Essas tercinas Wagner nomeou de pulsação da vida. E carregam mesmo essa certeza quando as ouvimos, como um coração pulsando e ansiando por mais vitalidade, por mais alegria, por mais vida. É uma afirmação da existência ante o sofrimento.

Do minuto 02:09 até 03:02, toda a orquestra participa: madeiras e metais no motivo dos peregrinos, as cordas graves acompanhado as tercinas das cordas agudas e a percussão, permanece forte mas discreta, do início ao fim dessa seção. Essa pulsação da vida desenhada no som das semicolcheias em tercinas dos violinos é arrebatadora. Mesmo que os trombones estejam em fortíssimo, são os violinos que chamam a atenção de nossa alma, eles se juntam às batidas de nosso coração, é o sangue da vida fluindo irresistível através do maior dos sofrimentos. Quanto mais os trombones executam sua dor, mais insistentes são os violinos, a vida também se justifica ante o sofrimento e encontra seu lugar na mais dolorosa das dores.

De 03:03 até 04:34, temos o retorno à calmaria do início da abertura, com os mesmos temas: as cordas graves no motivo do Arrependimento e as madeiras no canto dos peregrinos. Essa é a primeira seção da abertura.

A segunda seção se inicia em 04:35. Estamos agora no reino da deusa Vênus. Os violinos friccionam suas fusas buliçosas, faceiras, serelepes! A vida agora é outra. Há vida sim, mas agora tudo é fugaz, passageiro e transitório. É o amor sexual que fricciona nossa pele, depois que a primeira seção soou em nosso interior. Essa segunda seção, com temas ligados à Vênus, é a música que, na ópera, faz parte da cena do balé e também é a música sob a qual Tannhäuser canta o amor sensual e erótico no segundo ato. Na versão que Wagner preparou para Paris, ele revisou essa parte, tornando as sonoridades mais eróticas e compôs novos temas para Vênus, aumentando assim o tempo dessa segunda seção. A versão que escutamos aqui é a primeira, chamada versão de Dresden, porque estreou nessa cidade alemã. Assim, em 10:47 se inicia a última seção da abertura.

Durante a segunda seção, de 10:19  até 10:46, está o que Baudelaire denominou de as paredes vermelhas do ópio. Na versão de Paris, esse momento é ainda mais intoxicante.

A partir de 10:47 se inicia a terceira seção que se prolonga até o final da abertura, em 13:40. Essa terceira seção é uma reexposição da primeira seção, porém com variações na dinâmica, no ritmo, no andamento e na enunciação. A pulsação da vida retorna já no minuto 10:47, agora parecem redemoinhos que giram pela partitura e à medida que a música ganha contornos mais firmes, os violinos impõem também com igual firmeza a pulsação da vida.

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Abaixo, o vídeo com a Abertura da ópera Tannhäuser, com a Orquestra da Rádio de Frankfurt.