*Franklin Jorge
Morava a escritora Maria Helena Cardoso num pequeno e aristocrático chalé, numa rua tranquila de Ipanema, não lembro mais se no mesmo endereço em que morara e morreu seu irmão Lúcio, escritor, jornalista, cineasta, por quem se apaixonaram a atriz Maria Fernanda, filha de Cecília Meireles e a escritora Clarice Lispector. Nos últimos anos de vida, após o infarto que o deixou hemiplégico e afásico, como Baudelaire, recuperou-se Lúcio de suas mazelas, em parte, lentamente, graças à dedicação de Lelena e de amigos como Walmir Ayala, que se devotaram abnegadamente à sua difícil e lenta recuperação.
Queridíssima por todos, Lelena expandia à sua volta uma aura de entusiasmo e cordialidade, acolhendo a todos, sempre valorizando generosamente o talento alheio, sem outra retribuição, exceto aquela decorrente dos bons resultados. A mim, dedicou uma espécie de afeto maternal, porque percebera em meus escritos algo do espírito atormentado de seu irmão que em seu apogeu olímpico reunira em torno de si alguns dos grandes escritores e artistas de sua geração.
Essa plêiade de talentos que vivia à sua volta, numa versão tropical do famoso Bloomsbury Group londrino que gravitava à volta de Virgínia Woolf, tinha como remanescentes ilustres, entre uns poucos outros, Walmir e Lelena, farmacêutica formada que já entrada na velhice tornou-se escritora e famosa com a publicação de Por onde andou meu coração e Vida vida, livros de memória que são o repositório de uma época marcante da história cultural do Rio de Janeiro no século passado. era o líder e mestre de uma plêiade de jovens artistas e escritores em potencial, a juventude doirada do talento, como discípulos, companheiros e amigos do mestre que representava a rebeldia, o inconformismo, enfim aquela paúra que emana do incerto.
Visitava-a, geralmente, à tarde, após as 15 horas, para conversar e ouvir música na pequena sala atulhada de objetos e lembranças. Devotada a Mozart e Bach,ouvindo apaixonadamente Maria Callas e La Tebbaldi. Levei-lhe discos de Waldemar Henrique, autor de Chulas marajoaras que ela cantara com fundo melódico, rico de conexões. As vezes, quando o tempo estava bom e convidativo, íamos caminhar na Praça Nossa Senhora da Paz, naqueles das em que podíamos visitar barracas da Feira Hippie, onde conhecíamos gente jovem e ocasionalmente, por milagre, diria, encontrávamos alguém que ela ou Lúcio conheceram no passado. Perdiamo-nos em meio a tanta novidades e surpresas inesperadas. Havia sempre, aqui e ali, algo que nos distraia e encantada. Sobretudo gostava de ouvi-la sobre a vida que levara Lauro e quem habitava o Bloomsbury naquele bairro ipanemenho.
Quando a visitei à primeira vez, estava encantada com a leitura de Milan Kundera e não regateou elogios à sua escrita e à Insustentável leva do ser, a cuja estilo personalíssimo de sua escrita acrescentaria a profundidade que são virtudes preciosas em um escritor de sensibilidade e talento. Profundo e simples em sua maneira de expor suas percepções filosóficas, ressaltou. Lembro-me que Walmir, antes de sairmos de casa, recomendou-me que prestasse atenção às suas palavras, pois teria muito a aprender com sal suas percepções e experiência.
Nessa tarde ela me deu a deixa para que a interrogasse sobre a tradicional cozinha mineira, ao servir-nos umas deliciosas broinhas acompanhadas de sobremesa que eu nunca provara, Sagu com vinho tinto acompanhado de creme inglês, que ela mesma fizera para adoçar-nos a boca, como diria, rindo-se. Pedi-lhe a receita, certo de que se tornaria uma das minhas sobremesas prediletas. E Lelena, num turbilhão de palavras, foi logo dizendo que a receita era por demais simples e barata. Sagu, água, vinho tinto suave de boa qualidade, açúcar, cravos e um pedaço de canela em pau. O segredo estaria em deixá-lo de molho de um dia para outro, escorre-lo bem e lavá-lo, e no cozimento do sagu fazer o mesmo; suas bolinhas devem ficar completamente transparentes, mas não gosmentas.