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Tempo e interpretação

A variedade sonora presente nas audições de ópera a partir das interpretações vocais de algumas cantoras.

*Alexsandro Alves

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I

Kirsten Flagstad (1895-1962), Martha Mödl (1912-2001), Astrid Varnay (1918-2006), Birgit Nilsson (1918-2005)! Essas quatro sopranos são as grandes divas do canto wagneriano. Flagstadt teve seu auge nos anos 30, 40 e 50. Uma voz poderosíssima, juntamente com a brasileira Bidu Sayão, salvou o Metropolitan de Nova Iorque da falência durante a Grande Depressão. Suas grandes gravações são as das décadas de 30 e 40. Mödl conheceu o ápice de sua carreira nos 50 quando dominou os papéis wagnerianos em Bayreuth, sobretudo o de Kundry, em Parsifal. Varnay, juntamente com Mödl, dominou Bayreuth de 1951, quando estreou nesse teatro, até 1968. Nilsson teve seu ápice nos anos 60, quando dominou completamente os papéis de Brünnhilde e Isolda em Bayreuth. Para se ter uma ideia, Nilsson interpretou Isolda mais de 200 vezes!

 

Kirsten Flagstad

 

Flagstad caracterizada como Brünnhilde

 

Martha Mödl

 

Mödl caracterizada como Kundry

 

Astrid Varnay

 

Varnay caracterizada como Isolda

 

Birgit Nilsson

 

Nilsson caracterizada como Isolda

 

Aposentada

Essas cantoras fazem parte de um momento do canto wagneriano conhecido como Era de Ouro. Suas vozes, fortes e ressoantes como trompetes, impressionavam pelo volume, pela potência e pela energia! Elas conseguiam rasgar o denso tecido harmônico wagneriano com tal precisão, cirúrgica, que suas interpretações realizavam o desejo de Wagner de integrar a voz humana na orquestra como se esta fosse também um instrumento dela. Nos grandes momentos das quatro, há aquela integração maior em que o canto humano faz parte da orquestra, dentro do estilo quase recitativo quase canto de Wagner.

Até esse período, se pensava que apenas vozes titânicas poderiam interpretar Wagner de forma íntegra. Claro que vozes pequenas não suportariam, como não suportam mesmo,  as linhas melódicas e dramáticas do mestre de Bayreuth, mas sem sombra de dúvida, a inteligência musical e dramática podem ajudar vozes não tão gigantescas quanto as das wagnerianas do passado, a encarar, e com sucesso, uma maratona do Anel. Vejamos.

 

II

Em 1988, o maestro Daniel Barenboim e o diretor Harry Kupfer foram convidados por Wolfgang Wagner para uma nova produção do Anel. Essa produção ficou em cartaz até 1992, quando foi lançada em todos os formatos existentes na época: CD, VHS e LD. Uma produção inovadora, a dupla compreendeu O anel como uma história da degradação ambiental em um mundo consumido pela guerra nuclear. O cenário, em sua maioria, era aberto, dominado pela cor negra. Seus personagens caminhavam por um vazio cenográfico adornado, algumas vezes, por raios lasers e estruturas de metal alinhadas ao teatro pós-dramático – mas não entra nessa estética de forma decisiva.

Barenboim conseguiu um som orquestral dos mais majestosos que o liga a Wilhelm Furtwrangler na liberdade e na poesia com os quais desenha os sons que extrai dos pensamentos musicais wagnerianos. Seus andamentos são por vezes mais moderados do que os do alemão e carregam, em passagens como os finais do terceiro ato da Valquíria ou o do primeiro ato de Siegfried, as melhores demonstrações de clareza e entendimento dessas partituras na modernidade, entregando para o ouvinte uma imersão integral no mundo sonoro da saga dos nibelungos.

O anel é uma partitura, assim como são todas as partituras operísticas da terceira fase de Wagner, amplamente sinfônica. Isso significa que a orquestra tem o papel principal nessas obras. E ninguém, desde que Barenboim deu seu testemunho dessa obra em Bayreuth, conseguiu superá-lo. Mais do que em qualquer outra gravação, a Tetralogia, sob a regência de Barenboim, evidencia as virtudes sinfônicas de Wagner.

Para o canto, o leque de cantores que Barenboim e Kupfer selecionaram, demonstra uma seleção que privilegiou a atuação cênica. Porque as vozes, em sua maioria, são um pouco menores do que as que se espera para esses papéis. Vejamos como exemplo Anne Evans.

 

Anne Evans

 

Evans caracterizada como Brünnhilde no Anel de Kupfer/Barenboim. Ao seu lado, o Wotan de John Tomlinson

 

III

Evans interpretou Brünnhilde em todos os anos da produção. O que mais se notou em sua voz, pequena quando comparada àquelas do passado, é que possuía uma variedade dramática e de enunciação mais variadas do que suas predecessoras.

Evans soube privilegiar esse aspecto do ideário wagneriano, tornando sua Brünnhilde uma personagem querida e admirada pelo seu trabalho vocal-dramático de caráter cênico.

O ambiente acústico bayreuthiano também contou pontos positivos para sua vitória artística. A acústica peculiar desse teatro, em que a orquestra permanece enterrada entre o auditório e o palco, no subsolo, contribuiu e contribui sempre, para a vitória dos intérpretes.

O som em Bayreuth, como observa Barenboim, nunca é violento. Por mais alta e poderosa que sejam as enunciações das notas escritas no pentagrama, a localização da orquestra transforma sua sonoridade: ela sempre é doce, redonda, maleável; nunca é ríspida, abrasiva ou petrificada.

Notamos essas diferenciadas características acústicas quando comparamos gravações de Bayreuth com gravações de outros teatros – por exemplo, esse Anel de Barenboim (Bayreuth, 1992) com o Anel de James Levine (Metropolitan de Nova Iorque, 1990).

Evans compensa sua caracterização vocal com uma variedade dramática que não encontramos tanto no canto wagneriano até então, embora fosse do desejo de Wagner essa equiparação entre a música e o drama.

Abaixo, trecho do final de Siegfried. Anne Evans como Brünnhilde e Siegfried Jerusalem como Siegfried. Produção de Harry Kupfer para Bayreuth, temporadas de 1988-1992, regente: Daniel Barenboim.