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Tipos de ouvintes de música clássica

Qual tipo de ouvinte você é? Bruno Gripp, estudioso das letras clássicas e da música, em um texto divertidíssimo, elenca os tipos de ouvintes de música clássica. São tipos conhecidos por quem embarca na aventura da música e sempre é com muito bom humor que lembramos dessas figuras.

*Bruno Gripp

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Quem disse que existe um único e monolítico tipo de ouvinte de música clássica?

Na verdade todo leitor que já frequentou um concerto ou já discutiu música alegremente em uma mesa de bar sabe que há várias abordagens diferentes para a apreciação musical, aqueles com maior experiência já até tendem a compartimentar esses ouvintes em grupos, com tipos comuns. Muito disso dá-se por origens e visões diferentes de música, mas eu não vim aqui para teorizar sobre isso e sim para falar de cada um dos grupos, qual Sterne no começo da Viagem Sentimental ao elencar os tipos de viajante.

O Sinfonista: A orquestra é seu instrumento preferido, ele não consegue conceber algo superior ao som da orquestra sinfônica teuto-romântica. A história da música é a história do desenvolvimento do repertório orquestral até sua sublimação em Beethoven/Brahms/Mahler/Strauss/Ravel e tudo que nega isso deve ser rejeitado com veemência. A palavra-chave é desenvolvimento temático e fluidez melódica, instrumentos de época são uma abominação, uma ópera italiana uma heresia pelo desprezo dado à orquestra, Mozart e Haydn meros membros anteriores da evolução do gênero, seu interesse é limitado. As paixões de Bach e os oratórios de Handel têm árias demais. O resto do repertório barroco lhe é um mistério, música instrumental não lhe sabe bem, como um piano pode competir com a riqueza timbrística de uma orquestra?

Conhece orquestras de todos os grandes países do mundo. Sabe reconhecer o estilo de regência Toscaniniano, Furtwängleriano, sabe distinguir o som da Sinfônica de Boston do som da Sinfônica de Nova York, tem interesse em técnicas de gravação e alega preferir o decaimento sonoro de uma sala de orquestra ou de uma igreja às artificiais gravações de estúdio. Coleciona 40 gravações de cada sinfonia que conhece, e discute empolgadamente cada uma das versões de Bruckner.

Prós: O mundo orquestral é vasto em gêneros e em compositores, abrange quase 200 anos com muita variedade e cor. Esse tipo de ouvinte desenvolve uma grande sensibilidade para andamentos e agógicas, além de grande refinamento na percepção sonora.

Contras: Se ele tem 200 anos à sua disposição, outros 600 são ignorados. Têm uma certa inflexibilidade com um estilo mais intimista. E tende a ignorar gêneros essenciais como a música de câmara. Gasta muito dinheiro com aparelhagem de som.

Disponibilidade: É um dos ouvintes mais numerosos e muito do repertório de gravadoras é dirigido para ele. Em relação a países, é maioria nos EUA e na Inglaterra, mas em geral é alta onde quer que haja uma sala de concerto. Sua origem vem desde a criação de salas de concerto públicas no classicismo.

Maior aliado: o instrumentista.

Maior oponente: o operário.

O Operário: Em teoria, o exato oposto. O que lhe interessa são as vozes, belíssimas vozes, e os dramas, os terríveis dramas sofridos por aquelas senhoras e senhores no palco. Verdi é seu herói, mas a partir daí há vários subgêneros, aquele com um gosto mais abrangente aprende a gostar de Mozart, Wagner, Janácek, entre outros. Mas um bom número se restringe ao repertório romântico italiano, Donizetti, Bellini, Puccini. A melodia é rainha, o drama o rei, e o resto é apenas consequência. Uma boa ópera é aquela que tem melodias memoráveis.

Prós: a ópera é provavelmente o gênero mais importante da história da música, então estar em contato com esse gênero é sempre uma vantagem. Além disso, o interesse em técnica de canto produz análises e comentários muito úteis sobre o canto, o instrumento por excelência.

Contras: É sem dúvida o ouvinte que tem menos interesse em música, e uma característica estrutural e outra histórica contribuem para que a sensibilidade musical seja reduzida. A muleta dramática do libretto muitas vezes serve, tanto ao compositor quanto ao público, para não dar tanta atenção no efeito da música, o que produz tanto uma música de pior qualidade (evidentemente isso não vale para os grandes gênios do gênero) quanto um menor interesse em música – em outras palavras, o libretto serve no lugar de música. O outro fator é o virtuosismo vocal que em muitos repertórios constitui no verdadeiro fim musical. Isso isola seu ouvinte dos outros da maneira mais radical em toda a música clássica. Tem a tendência de viajar pelo mundo em busca das grandes casas de ópera em Nova York, Viena, Berlim, Milão, Paris, como um Jet-setter cultural.

Como reconhecer: se fizer comparações esdrúxulas entre Salomé e Lucia de Lammermoor, baseadas tão somente na semelhança dramática entre as duas personagens, fique tranquilo, você está diante de um operário grau 5.

Disponibilidade: Por exigir uma infraestrutura maior do que uma orquestra, uma casa de ópera é mais rara e só existe em grandes centros aqui no Brasil e também em Portugal, mas onde há, eles são muito numerosos, excedendo em muito os outros ouvintes. Seu reino é, compreensivelmente, a Itália, mas onde quer que tenha alguém cantando “Vesti La giubba”, você verá um operário.

Maior aliado: nenhum.

Maior oponente: todos. O operário se isola da música, um operário agudo (grau 4 e 5) tende mesmo a acreditar que ópera não é música e sim outra coisa. Sobre que seria essa outra coisa ele responde, tautologicamente, “ópera”.

O Instrumentista: Toca um instrumento desde pequeno e essa foi a origem do seu gosto por música e muitas vezes a baliza pela qual ele enxerga a música. Por isso desenvolve uma obsessão com seu repertório e técnica. Conhece todos os caminhos do instrumento e tende a ouvir obras muitas vezes pelo simples prazer em ver um instrumentista demonstrar toda a sua habilidade. Cresceu tocando o repertório do instrumento, então exige tanto profundidade quanto amplitude: para ele, as sonatas barrocas obscuras são uma jóia, e é profundamente interessado naquilo que a música contemporânea traz de novo, ainda que o resultado sônico não lhe agrade. Coleciona milhares de gravações da mesma obra, sabe o som específico de cada instrumentista, se violinista, costuma fazer quizzes com seus colegas instrumentistas para ver se descobrem quem está tocando determinada passagem do concerto de Brahms. O único problema é que, como ouviu todas, já decorou as passagens.

Como reconhecer: Se souber tudo de Alkan, mas nada de Paganini, você está diante de um “pianeiro” (o instrumentista pianista). Se souber tudo de Vitali, mas nada de Chopin, você está diante de sua contraparte violinística (cujo nome ainda não foi consagrado pelo uso, de acordo com as últimas publicações sobre o assunto)

Prós: Conhecimento profundo de repertório e amplitude, nihil violinisticum (pianisticum) mihi alienum est. Além disso, tem um profundo interesse por vários gêneros, conquanto eles contenham o seu querido instrumento. Então lhe interessa a música orquestral pelos concertos, a música de câmara e a música para instrumento solo.

Contras: Todos os problemas da superespecialização. Reducionismo e pouca abertura a novos sons. A competição interna é sempre muito grande, seja para se mostrar um maior conhecedor do instrumento, seja para discutir qual instrumento é superior.

Disponibilidade: Em 97,7% dos casos tocam o dito instrumento, ou por terem nascido tocando, ou por, dado seu interesse no assunto, terem decidido tocá-lo. Ocorrem com maior naturalidade em violinistas, pianistas e cellistas, mas notícias clarinetistas e violistas não são raras. Às vezes alguns operários podem ser classificados como instrumentistas, mas isso ainda não conseguiu o consenso dos estudiosos.

Maior aliado: o sinfonista.

Maior oponente: outros instrumentistas.

E por fim, há os fanáticos por compositores, normalmente associados a um dos membros já citados, mas o culto desenvolvido ao redor dessas três figuras abaixo merece um comentário:

Os bachianos (J.S. Bach): Aquele que é provavelmente o maior compositor de todos os tempos não podia não ter seus seguidores. Bach é grande, mas você percebe que a figura é um fanático quando ela despreza toda a música barroca contemporânea (que Bach não desprezava, aliás, a ponto de copiar concertos de Vivaldi e o Stabat Mater de Pergolesi). E quando a figura começa a fazer análises ultra complexas de Bach, une misticismo e descobre o que Bach verdadeiramente pensava. Aí meu filho, você está no meio da mistificação, corre.

Os wagnerianos (Wagner): O compositor mais adulado da história, obviamente tinha que ser mencionado. Sociedades existem para praticamente todos os compositores, mas sociedades wagnerianas são um fenômeno muito mais amplo e popular do que sociedades de qualquer outro compositor. Como o único compositor a se proclamar como o ápice da música ocidental, Wagner te fornece sua própria teoria estética, teoria política, filosofia. É o único que possui um templo dedicado exclusivamente ao seu culto, a Casa dos Festivais de Bayreuth. Atua muito fortemente em almas influenciáveis.

Os mahlerianos (Mahler): Convenhamos, Mahler é um grande compositor. Convenhamos, Mahler é um compositor supervalorizado. Como um grande compositor pode ser supervalorizado é quando o número de gravações de suas sinfonias supera o de Beethoven, quando um número cada vez maior de biografias a seu respeito surge. Quando seu centenário é preparado com a pompa de uma data de Mozart. Mahler é um fenômeno, Mahler é o compositor que melhor comunica com o público contemporâneo e que é mais capaz de captar fãs. Em resumo, Mahler é a Legião Urbana da música clássica.