*Joseph Kyselak
yselak também escreveu, em 1829, dois volumes de notas de viagem, que valem bem menos que seus autógrafos. Num barco, no Danúbio, o escrivão reclama da trivialidade dos passageiros, garçons, camareiras, mascates, barqueiros. Mostra que possui a vulgaridade daqueles turistas que gostariam de lugares não contaminados e acreditam que só os outros os contaminam. Kyselak é considerado o único com sentimentos nobres, capaz de apreciar o autêntico. O resto são “meio-homens”, uma massa estúpida e feia, da qual ele não suspeita que faça parte.
Kyselak é um desses desprezadores das massas, numerosos também hoje, que, espremidos no ônibus lotado ou na estrada congestionada, se consideram habitantes de solidões sublimes ou salões refinados, e desprezam cada um deles. o vizinho, sem saber que são pagos na mesma moeda, ou piscam-lhe o olho, para o fazer compreender que, naquela multidão, só os dois são escolhidos e almas inteligentes, obrigados a partilhar o espaço com a manada. Essa autoconfiança do chefe do escritório, que proclama “você não sabe quem eu sou”, é o oposto da verdadeira autonomia de julgamento, desse orgulho que existe em Dom Quixote quando, desanimado, murmura “eu sei quem eu sou”. sou” e que nunca desaparece. acompanhado pelo desprezo fácil e indiferenciado pelos outros.
A arrogância padronizada em relação à massa é um comportamento tipicamente massificado. Quem fala da estupidez em geral deve saber que não está imune a ela, porque até Homero desce do Olimpo de vez em quando; deve assumi-la em si mesmo como um risco e destino comum dos homens, consciente de ser umas vezes mais inteligente e outras vezes mais burro que o vizinho de casa ou do eléctrico, porque o vento sopra onde quer e nunca ninguém pode ter a certeza de que, naquele momento ou um instante depois, não deixe o vento do espírito. Os grandes humoristas e os grandes comediantes, de Cervantes a Sterne ou Buster Keaton, fazem-nos rir com a miséria humana porque a descobrem também e antes de tudo em si mesmos, e este riso implacável implica uma compreensão amorosa do destino comum.
A estupidez também é um fato cronológico, assume formas e conotações dependendo do período histórico e por isso nos persegue e afeta a todos, não apenas aos outros, como acreditava Kyselak. O escritor altivo que parece zombar de todos indiscriminadamente não faz mal a ninguém, porque se dirige a cada um de seus leitores fazendo-o acreditar que o considera o único inteligente em uma massa de beócios, mas assim se dirige à massa de leitores. Essa técnica geralmente é bem-sucedida, porque o leitor pode ficar lisonjeado com essa exceção que o desprezador dos outros faz em seu caso, sem perceber que o faz, justamente, para todos. Mas a literatura autêntica não é aquela que lisonjeia o leitor, confirmando seus preconceitos e suas certezas, mas aquela que o persegue e o põe em dificuldades,
Não seria ruim se alguém que tende a considerar seus vizinhos “meio-homens” apenas pegasse a caneta, como Kyselak, para escrever seu próprio autógrafo. Quem sabe, copiando tantas vezes aqueles rabiscos acabaria por esvaziar o seu nome de sentido como uma palavra repetida tantas vezes, por se esquecer de si mesmo e abandonar qualquer presunção, por se tornar Ninguém.
Claudio Magris
O Danúbio
Foto: Graffiti de Joseph Kyselak em Brno