*Bruno Macedo
Tudo parou. Mas a chuva veio, eu me senti feliz ao vê-la chegar, com seu jeito manso, solitário e confuso de existir, meses depois do início do caos, ou melhor, do silencio que já incomodava, as ruas desertas em quase todo o mundo, o medo reinava lá fora, dentro de casa e dentro de nós. Um fantasma lá fora, à espreita para nos ver sair e nos degolar, o problema é que a gente só toma as devidas providencias quando o perigo bate à porta, ficamos observando o desastre na casa do vizinho, até somos solidários, a verdade é que quase sempre não damos importância para evitar que chegue até nós o que houve do lado. Minha mãe sempre diz: “quando você ver a barba do vizinho pegando fogo, ponha a sua de molho”. Ela tem razão. Mas a chuva veio, por um momento esqueci de tudo o que estava havendo, parecia que estava tudo normal, que a ideia de anormalidade era simplesmente um pesadelo que havia tido na noite passada ressoando na manhã seguinte.
Pairava uma impressão como se fizesse séculos que os pássaros haviam entoado seus cantos, e desde então permanecido inertes e silenciosos, mesmo depois do barulho da chuva, o silencio voltou a reinar, as vizinhas fofoqueiras que moram em frente à minha casa estavam trancafiadas, provavelmente corroendo-se de medo de morrerem cedo, na falsa convicção de que fossem novas de idade, algo que não eram, com certeza estão se atualizando de forma virtual, no mês passado uma delas me disse que o mundo estava em suas mãos, olhei e vi na sua palma um telefone celular, ri tanto que cheguei a engasgar e fiquei pasmo em saber como o mundo delas era pequeno, nunca fui amigo das tais, chegava e saía de casa e elas eternamente fincadas nas calçadas, eu sempre me perguntava se não era melhor se mudar de vez para ali, já que para elas aquele era o melhor lugar, sempre as detestei, mas como sendo um bom moço sempre procurei conviver bem com os vizinhos, desde do sábado à tarde eu olhava para a calçada e ali faltava uma parte do mundo, elas sumiram, o que achei que nunca sentiria por elas, naquele momento senti, era saudade.
Lá fora, as poucas pessoas que era possível de se ver diziam que não sabiam se suportaria viver por muito tempo em isolamento, é claro que essa não deveria ser a preocupação primordial, mas lá no fundo é possível de entender que passar muito tempo isolado também sufoca, algumas pessoas reagiram ao isolamento de forma desesperadora, essas pessoas talvez nunca tiraram um tempo para se sentirem sozinhas. Fernando Pessoa escreveu em seu Livro do desassossego que “a liberdade é a possibilidade do isolamento. (…). Se te é impossível viver só, nascestes escravo”. Eu sempre vivi meio que isolado, sempre amei profundamente o ato de reservar finais de semana e tardes de folgas para isolar-me, ler, ouvir minhas canções prediletas e estar em minha própria companhia, isolar-se agora é estar livre, sabia que essa frase absurda para muitos, um dia faria sentido.
Não acredito que a humanidade mudará muito depois desse caos, tantos outros momentos caóticos houvera antes e tudo continuou da mesma forma ou pior, não há muito que esperar de uma grande maioria que não enxerga muitas coisas além do seu próprio nariz. Outra possibilidade que observando de forma rasa, era uma benção, de forma profunda, um horror. Diziam que muitos a partir dessa pandemia mundial iriam se voltar para Deus, arrependidos, sedentos para adora-lo, isso não é verdade, reconhecer a supremacia e adorar a Deus somente com a expectativa de que Ele os livre de morrer através do vírus, é uma das maiores hipocrisias, ama-lo em detrimento do seu bem estar e continuidade da existência terrena é um demonstração de jogo de interesses, enquanto muitos o amaram sem receber nada em troca, do contrário, receberam açoites, perseguições, calunias e até a morte, o amor verdadeiro é medido onde não há praticamente nada de compensador, só se aproxima do pão quem está com fome, alguém um dia afirmou isso em minha presença, não é verdade, também se aproximam do pão aqueles que são responsáveis a ponto de verificarem se é necessária uma reposição, se as formigas não estão devorando o alimento, ou se há ou não famintos que não podem alcança-lo.
Espero que através dessa pandemia, muitos revelem quem realmente são, quais suas impressões acerca do bem-estar social, da preocupação com o próximo, ou que revele mais nitidamente o quão cruel e sanguinário pode ser o homo sapiens.
A quarentena é um espaço dedicado a si mesmo e aos demais em que se está em companhia, uma espécie de reclusão, não são quarenta dias, pode ser mais ou até menos, depende do que há lá fora.
Vivemos agora, em constante uso de “máscaras”. Mas será se as tiramos algum dia? As máscaras não estão sempre presentes em nossas faces?
Claro que o uso das mesmas é mais que necessário durante essa terrível pandemia, só que literalmente falando, desde muito tempo vivemos mascarados.
Hoje pela manhã avistei as vizinhas olhando para fora, em menos de cinco minutos fecharam o portão. Mas como ficar na calçada, se a morte está a solta lá fora? A quarentena revela saudades que achávamos que fossem inexistentes ou irreveláveis, e prova da maneira mais amarga que estar perto nem sempre é estar junto.
Vivemos tempos sombrios, alguns respeitam as regras, as orientações, outros não, acho que sempre haverá os desobedientes, é importante que eles existam, para que decidamos ser ou não ser como eles.