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Um adeus à tragédia

Ouvindo música e pensando nas diferenças entre a tragédia grega e o drama oitocentista.

*Alexsandro Alves

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Eu quase sempre deixo que o app de música do meu celular escolha aleatoriamente o que ouvirei, é a função random.

Assim, num momento eu posso ouvir ópera, em outro, sinfonia, em outro, um brega de Roberto Müller, tudo em uma sequencia, digamos, flutuante.

Ontem eu estava no ônibus e numa dessas escolhas aleatórias do app, o celular começou a tocar Du zeugtest ein edles Geschlecht, nem acreditei, havia esquecido que tinha essa música no celular. A função random é também excelente por isso, ela traz à tona elementos submersos na memória.

E essa música, que faz parte dos momentos finais da Valquíria, é muito interessante porque nela ocorre uma mudança de posição estética em Wagner e essa mudança é reveladora da maneira como Wagner compreende algumas situações sociais.

Na tragédia grega, o herói sempre comete uma hybris. É uma sequencia de atos em que o personagem demonstra um orgulho excessivo, uma vaidade desmedida que o faz incorrer na ira dos deuses. Édipo é o exemplo maior. Na peça de Sófocles, Rei Édipo (ou em algumas traduções Édipo-Rei), o personagem é extremamente arrogante, sobretudo com Tirésias, que lhe revela o verdadeiro culpado pelos fatos que ocorrem em Tebas: o próprio rei, Édipo.

A peste que assola o reino deve-se ao incesto e ao parricídio cometidos por Édipo. Ele possuiu sexualmente sua mãe, Jocasta e matou seu pai, Laio. Mas há um detalhe aqui: Édipo não sabia que eram sua mãe e seu pai.

Mesmo assim, os deuses o castigaram através da peste sobre Tebas. Castigaram a cidade inteira por conta de atos cometidos pelo rei, mas que o rei não tinha completo conhecimento deles. Sim, Édipo possuiu Jocasta. Mas não sabia que era sua mãe. Édipo matou seu pai, Laio. Mas não sabia que era seu pai. E na Grécia antiga, matar os pais era mais grave do que matar um homem ou uma mulher quaisquer.

Édipo não tinha consciência do que estava fazendo. Então, quando Tirésias o adverte, ele zomba. No fim da peça, é punido por atos que conscientemente não fez.

Voltemos para a Valquíria.

Brünnhilde, a valquíria, desobedeceu seu pai, Wotan. Agora, ela precisa ser punida. A punição consistirá em ser adormecida em uma rocha e, lá abandonada, será possuída por qualquer homem; e o homem que a despertar, será seu marido e fará dela sua escrava, casando-se com ela e impondo-lhe uma rotina de trabalhos domésticos.

Aterrorizada com tamanha vergonha, ela afirmou, alguns momentos antes, que os atos que fez foram atos colocados em sua vontade pelo pai. Que agia sabendo dos desejos reais do pai. Ela transfere, ou ao menos compartilha, sua culpa. Se o deus é onisciente, se sabia de tudo, poderia ter impedido. Isso não é grego, e nesse ponto, Wagner abandona a tragédia e se volta para o drama romântico oitocentista.

Wagner, assim como Nietzsche, desejava restaurar a tragédia grega na modernidade. A impossibilidade disso é ontológica. O homem moderno não consegue pensar como o grego clássico. Nós não concebemos deuses que ajam de maneira alheia ao homem, e nem que o homem seja punido por algum mal que conscientemente não tenha feito, a intencionalidade. Será que Édipo, se soubesse que Jocasta era sua mãe, a possuiria? Ou mataria Laio caso soubesse que ele era seu pai?

Wagner faz perguntas assim nessa cena. E essa maneira de pensar é moderna, não é clássica. Não sei se é uma forma de pensar mais refinada ou se estamos mais fracos, porém ao questionar a justiça divina, ao mostrar a falta de lógica nas ações dos deuses, Brünnhilde consegue convencer o pai, e este ameniza o castigo. Mas é essa ação da valquíria, de não aceitar seu castigo e viver com ele até o fim, que diferencia o drama da tragédia.

A Valquíria vinha caminhando para a tragédia. Ato após ato. Cena após cena. Quem sabe o que fez Wagner mudar de ideia? Para Nietzsche, em muito aspectos, Wagner encalhou em Schopenhauer. E de fato não há filósofo mais romântico do que ele. E se Wagner se desvia de um verdadeiro final trágico na Valquíria, por outro, a música é coroada com os momentos mais arrebatadores da arte wagneriana até então.