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Um albatroz entre formigas

Colaborador de Navegos escreve sobre Aldir Blanc (1947-2020), escritor, compositor e  genial recentemente falecido, exaltando-lhe o talento que em vez de engrandece-lo o discriminou, como um albatroz baudelairiano  em meio a formigas vorazes.

*Francisco Alexsandro Soares Alves

Ser gigante em terra de miúdos é desaforo. Esta semana o Brasil perdeu Aldir Blanc. Não sei se vale dizer que o Brasil perdeu o que nunca quis encontrar. Neste país sempre se paga o preço pela grandeza com juros e correção de provincianos e de analfabetos cultos.

Por que este país sempre estará aquém de sua arte? Eu quero crer que seja pelas políticas educacionais que sempre inferiorizam o povo deste país, eu quero que crer que seja pelo desequilíbrio social cultivado com garbo neste país, eu quero crer que seja pela má consciência histórica que acomete o povo deste país. O outro, o outro e o outro. Porém o pior inferno somos nós. Nós, cínicas vítimas conscientes do mal político, conscientemente anestesiadas em nossos bolsões rarefeitos de valor histórico.

Não houve menção pública do governo federal. Houve mentiras propagadas pela mulher do chilique de que prestou condolências à família do compositor e cronista. É assim que se trata artistas no Brasil. É assim que ateia-se fogo à memória nacional. Deixem o Museu em chamas. Qualquer memória, qualquer uma, é madeira boa de queimar para o povo da antropofagia. Vivemos nosso dia como operário das ruínas que construímos, somos nossos próprios vermes.

E os artistas? São albatrozes. Porque ser artista neste país é uma vergonha, é difamação. É caminhar entre a massa impura de analfabetos cultos e incultos, que sempre desejam despedaçar, ser artista no Brasil é jogar pérola para porcos bem criados de empáfia.

O Brasil é uma embarcação, cisne branco que em noite de lua, vai deslizando num lago azul. Por vezes voam uns albatrozes que, por infelicidade pousam na embarcação. É a alegria bruta da tripulação pegar o albatroz, que diante de porcos recebe chutes, tapas e risos descontrolados. Este monarca azul dos céus marítimos, canhestro e envergonhado, agora é joguete da patifaria de desalmados sem história e desafetos da memória.

Triste lição o artista recebe de seu povo neste país. Ser gigante em terra de miúdos é desaforo. Ousar criar entre canibais de si próprios é despedaçar-se sempre em mil estilhaços. O artista brasileiro voa sobre mares de loucuras patrióticas onde o peso das botas comandam a triste marcha para o ostracismo. Mas não, não é apenas o peso das botas. O inferno maior não são os outros, somos nós. As botas e quaisquer botas, civis ou militares, são apenas reflexos de nossa escolha pelo nada. De nossa escolha pelo não comprometimento, de nossa escolha em delegar o que compete a nós. Por preguiça. Por incapacidade. Por malandragem. Por autossabotagem. Pela apatia indecente de uma nação que vive em letargia de si.

Não há pátria como o Brasil, não há povo como o brasileiro. Explodam balões de ufanismo nas galeras que navegam em mares imensos, que trazem saudades da terra amada, este Brasil que tanto penso, e não o vivo, e despedaço seus criadores, e desfaço sua memória artística em estilhaços, amo minha pátria no fogo que consome nossa História, amo minha pátria no ostracismo que condeno seus artistas, amo minha pátria, como se amá-la fosse calçar botas e depenar seus albatrozes, como se amá-la fosse um ritual antropofágico, imerso na alienação de minha história e de minha cultura. Viva este país de esquecimentos.

“E daí?”

Com uma corda no pescoço, Flávio Migliaccio, asfixiando-se, deu fôlego para um país que não ousa contar sua história, que não sabe de seus artistas, que não enxerga nada de si. É sintomático que um indivíduo seja aplaudido ao dizer “e daí”. Porque somos a nação de todos os e daí. E quem disse aquele “e daí” histórico disse com a mais desavergonhada brasilidade, pois é a mais perfeita encarnação de nossa vergonha pela pátria, de nosso desprezo pelo brasileiro, de nosso descompromisso histórico com o pensamento. Temos aversão a isso.

Ah, e os albatrozes? Melhor se nunca aqui pousassem. Nesta nação de porcos antropofágicos. Neste país de formigas todo o gigante passa despercebido.