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Um boêmio bom de papo

Colaborador de Navegos resgata a memória de assuense que por muitos anos foi presença obrigatória em eventos sociais da cidade e tinha sempre uma história para contar.

*Pedro Otávio de Oliveira

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Fui uma criança crescida no meio de pessoas mais velhas e sempre gostei dessa agradável vivência. Tal costume me rende grandes amigos, alguns com até mais de 70 anos de diferença. Embora haja quem censure ou ache estranho, isto me faz uma pessoa feliz e realizada em muitos aspectos.

As histórias dos mais velhos me interessam pelos contextos em que se situam, pelas demonstrações de arrojo que requerem e pelos testemunhos de coragem que muitos expressam desde a textura de sua pele.

Dentre estes amigos que construí ao longo de meus 18 anos de idade, está José Nazareno de Oliveira e Avelino – prefiro empregar o verbo no presente por muitos de seus ensinamentos me acompanharem frequentemente. Dedé encantou-se aos 83 anos em 2018.

Cresceu numa pequena família, com seus pais, Vicente e Nila, e apenas uma irmã, Maria da Salete. Seu pai faleceu precocemente de um ataque cardíaco e sua irmã mudou-se cedo para a companhia de uma tia materna que fora morar no Rio de Janeiro. Assim formou-se Dedé, entre Assú – cidade de aguçada fertilidade literária, onde nasceram os mais antigos e longevos semanários – e Macau – com grande confluência cultural devida à frequente chegada de comerciantes e negociantes imigrantes pelo Porto –, ao lado da mãe que sempre foi apaixonada por ele.

Rapaz boêmio, festeiro, popularmente conhecido pelo apelido de Papachinha. Ele era a definição perfeita de um gentleman, cordial, atencioso, bem parecido, com paletós e calças de linho que “até o mês passado lá no campo inda era flor”. Na segunda metade do século passado, era incogitável a falta de Dedé num baile dançante da provinciana – mas com ares de cidade grande – Assú. Caso isso acontecesse, algo estaria errado.

Como todo bon-vivant, tinha um “pé-de-ouro”, mas prezava este dote ao escolher rigorosamente apenas algumas moças para dançar durante a noite. Para música, tinha predileção por Nelson Gonçalves, com o clássico A Volta do Boêmio, e Orlando Silva, com a famosa do rádio Malandrinha. Na cidade, conta-se que, certa vez, houve a festa de 15 anos do filho de um agropecuarista, para a qual ele não fora convidado. Ainda assim, altas horas da noite, ele chegara por lá e, francamente, exclamou “eu não fui convidado, mas vim!”. O pai do aniversariante, muito espirituoso, respondeu-lhe “eu tinha certeza de que você viria; por isso, não lhe convidei”. Situação resolvida: não houve motivo para ressentimentos, principalmente porque ele era querido em todos os grupos.

Dedé era um leitor voraz, criterioso e cuidadoso com seus livros. Era um dos poucos fiéis assinantes da O Cruzeiro em Assú. Foi ele quem me apresentou os franceses Mauriac e Rousseau, além do russo Dostoiévski, acho que por volta dos meus 12 anos de idade.  Lamentavelmente, no lançamento do meu primeiro livro, em 2017, ele não esteve presente porque estava se recuperando de uma cirurgia, mas foi muito bem representado por sua irmã Salete – por quem também nutro grande estima e carinho.

Durante 39 anos de sua vida, enfrentou um impiedoso câncer de pele, o que lhe custou um dos olhos, parte da audição e perdas afins. Por vezes, sem que ninguém soubesse, temendo incomodar, ele foi sozinho para um centro cirúrgico lutar pela vida. Passou por maus bocados, mas nunca perdeu a fé em Deus. Sua fé e resignação eram inabaláveis; nunca ouvi uma reclamação de Dedé. Sempre pedia forças a Deus, pois “a melhor coisa do mundo é viver”, como ele me disse muitas vezes. Foi o homem da família mais longevo – seus tios e primos não chegaram aos 70 anos.

Papachinha guardava interessantes histórias do Assú e de nossa família (descendemos do mesmo tronco Oliveira). Por vários anos, meu passeio da tarde era ir a sua casa e conversar horas esquecidas com ele. Nunca faltava sorvete de creme com passas. Falou-me de tia França e de seus costumes; das festas sociais e suas particularidades; da intervenção militar contra o comunismo que deixou dois mortos em Assú, em 1935, quando se falava em “perrepistas e liberais”; e também do acidente que sofreu ao lado da antiga Fundação SESP quando pilotava a motocicleta de modelo Vespa que pegara emprestada de Lair Fernandes.

Construiu ao longo de sua trajetória, por onde passou, muitos amigos. Poucos foram longevos como ele, restando-lhe apenas uns dois ou três, com os quais conversava por telefone. Lamentava-se por não ter com quem dividir algumas lembranças ou esclarecer algumas dúvidas de seu tempo de juventude. Um grande amigo de sua vida fora meu tio-avô Zacharias H. Hebron de Oliveira, com quem dividira muitas aventuras de infância e muitos jogos de bola no campo de areia em que hoje está chantado o Campus Avançado Walter de Sá Leitão.  Dedé alegava nossa afinidade à semente plantada nessa amizade de tantos anos, o que muito me alegrava.

Em 2018, perdi para a morte três grandes amigos, com os quais muito aprendi por meio de suas trajetórias: Demócrito Amorim (em agosto), José Nazareno (em outubro) e Maria Olímpia (em dezembro). Felizmente, a chegada da maturidade me mostrou que pessoas especiais não morrem, mas ficam numa prateleira de memórias da qual podemos tirá-las no momento em que precisarmos de seus ensinamentos.  Por fim, aprendi com Dedé que os momentos difíceis da vida servem para nos dar fortaleza e sabedoria para o porvir.