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Um dia no outono

Fundador de Navegos, já aposentado das redações, descreve um dia típico seu, plantando, escrevendo  e brincando com mais de uma dezena de gatos que recolheu das ruas nos últimos vinte anos.

*Franklin Jorge

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Uma das boas coisas que fazem o dia a dia dum aposentado é puder dispor do Tempo a seu bel-prazer, sem se importar com horários, alterando a rotina sem causar quaisquer prejuízos a outrem. Assim posso me dar ao luxo de tomar o café da manhã às quatro horas, amanhar a terra logo em seguida, tomar banho e voltar a dormir se me der na telha.

Ontem à noite, por exemplo, antes de dormir, cavei valas com o intuito de aduba-las e nelas plantar tomateiros, beterrabas, repolhos, alho-poró, abobrinhas, tudo enfim que me agrada ter à mesa com o tempero de meu esforço, embora subtraído, quase sempre, por meu filho que não gosta de ver-me gastando o que sobrou de minhas forças. Quando me dou conta, ele já assumiu todo o trabalho, já colheu os cachos de banana, as batatas e macaxeiras e refez os leirões, replantando-os, conforme as leis da arte da agricultura que aprendeu com a sua avó. E, nas horas vagas, escrevo e edito esta revista Navegos que está se aproximando de 200 mil leitores. E, quando posso ou o glaucoma permite, revejo manuscritos de algum livro que ainda tenho a esperança de ver impresso antes do embarque final.

Hoje, após o almoço com que um amigo me presenteou, aqui entregue por um motoqueiro, resolvi recolher numa mata aqui perto algumas sacolas com folhas secas que hão de servir-me de adubo orgânico, sem que precise dispender um centavo de bosta de vaca, que ainda uso por em em quantidade quase irrisória, apenas para criar uma fina camada sobre as folhas secas que se vão desfazendo com a passagem dos dias e fornecendo à terra suas virtudes nutritivas e germinativas.

Acompanhou-me nessa expedição o Preto Gil, gato que recolhi filhotinho de um lixão, a visão de um olho inteiramente perdida e a do outro, severa e irreversivelmente danificada. Foi comigo, até o terreno baldio, dentro do sacolão, bem quietinho. Lá, ia para onde eu ia, estacava quando eu recolhia o humus terrestre, e, quando voltei para casa, aboletei-o sobre o fardo de folhas secas que darão vida saudável às verduras e legumes plantados por minhas mãos enrugadas.

E agora, que contei tudo, pus água para ferver enquanto me lavo, pensando em um bom café coado na hora que se fará acompanhar de pão fresco com a coalhada síria que me mandou a Aldorisse e foi a melhor coalhada síria que já saboreei nesse outono da vida Segundo ela, feita por um sobrinho seu, tirado da vaca por seu pai chacareiro.