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Um homem de Antônio Martins

Fundador de Navegos relata conversa que teve, em 2008 com velho agricultor da cidade de Antônio Martins, no Alto Oeste Potiguar

*Franklin Jorge

Escrever, para o agricultor Francisco Lira Sobrinho, seria uma forma de imprudência ou de vaidade. Acho mais razoável falar, diz em voz pausada, porque palavras levam o vento… Já escrever, como faz o senhor, é diferente… Além de exigir conhecimento, papel e lápis, escrever é gravar o pensamento. Tenho para mim que quem escreve há de ter muita coragem… Sempre preferi falar. Pouco, se possível.

Aos 83 anos, aposentado pelo Funrural, ele confessa que, somente por uma questão de cortesia, aceitou dar o seu depoimento a um jornalista que vive do que escreve e, como qualquer pessoa que tem compromissos, não pode voltar para casa de mãos abanando. Sempre é preciso ganhar alguma coisa para o sustento de si e da família, acrescenta. Minha lavoura, como a sua, também é ingrata… Eu tirei o meu sustento da terra. O senhor tira das palavras que bota no papel. Mas, peço ao senhor, releve grande parte do que eu disser, pois sou um velho e mal sei ferrar o meu próprio nome no papel…

O velho é um dos presentes ao Centro Social onde se realiza uma reunião preparatória dos oitenta anos da passagem do bando de Lampião pela cidade, em 1927. Alguém me informa que ele teria alguma coisa a dizer sobre o assunto que inspirou à Prefeitura de Mossoró a “Marcha da Resistência”, onde o episódio teve o seu sangrento desfecho que passou a fazer parte da história da cidade que é, por sua pujança e desenvolvimento, uma espécie de Capital do Oeste.

Eu tinha dois anos quando tudo aconteceu. Mas ouvi muito o meu pai contar que tinha um cunhado, José Silvestre, que foi agarrado por Lampião, que pensava que ele tinha dinheiro e queria um resgate para soltá-lo. Como Silvestre não tinha onde cair morto, Lampião mandou que ele saísse correndo para não morrer. Porém, cheio de hombridade ou por ser muito moço e afoito, Silvestre respondeu que não ia morrer correndo como um cachorro… Para não ficar desmoralizado, Lampião deu-lhe uma punhalada.

Aqui em Antônio Martins, na época um povoado chamado de Boa Esperança, Lampião saqueou o comércio local. Foi uma coisa tremenda, pois não podendo carregar tudo o que roubavam, por falta de transporte e para não atrapalhar a fuga, os cangaceiros estragavam tudo o que não podiam levar. Furavam de punhal os sacos de mantimentos e os jogava no meio da rua, tocavam fogo em fardos de algodão e de tecidos…Como uma horda de bárbaros passaram por aqui…

Meu pai tinha muita memória e sabia contar os fatos. O senhor teria gostado de trocar com ele um dedo de prosa. Eu, porém, só sei ouvir. Ele morreu na casa dos 93 anos e minha mãe, que Deus tenha em sua glória aos dois, chegou aos cem anos com o juízo em perfeito estado. Hoje, não considerando o fato de ter sido agricultor a vida inteira, sou um homem pobre, pois não tenho mais pai nem mãe…

Desde que me entendo por gente, meu ramo foi a agricultura, uma arte muito antiga que faz medo a muitas pessoas de hoje em dia, que só pensam em sambar, forrozear, beber, raparigar e ter facilidades na vida. Ninguém mais quer pegar no pesado. Até porque se tornou costume agora o governo manter as pessoas desocupadas, incentivando com o pouco que dá a malandragem. Em toda a parte os campos estão abandonados. Somente os teimosos e os que não querem viver da caridade do governo continuam labutando, plantando uma coisinha aqui e outra ali, para não morrer de fome e puder andar de cabeça erguida, sem depender de ninguém. No mais as cidades e o campo estão cheios de magotes e mais magotes de malandros, de gente que vive dessa esmola que dá o governo todo mês, a Bolsa Família… Para mim havia de ter outro nome, bolsa malandragem…

O velho pondera que o agricultor, por natureza, confia em Deus. Só o fato de amanhar a terra, preparando-a para o plantio sem saber se a colheita será boa ou não, já faz do agricultor um homem religioso. Não conheço ninguém que viva de labutar a terra que não tenha fé. Eu sempre confiei em Deus e gosto de rezar o Terço, que a meu ver é um valimento divino. Quem reza está se protegendo. Quem reza está botando sentinelas para se proteger. É como uma vacina contra o mal.

Minha experiência – se quer saber — resulta da confiança que tenho em Deus… Plantar a terra e cuidar das lavouras é se comprometer com Deus. Quanto a minha tranqüilidade, se quer saber, nasce da submissão à verdade. Porém, em toda vida há sempre alguma coisa errada. Minha idade, por exemplo, não é a mesma que está nos meus documentos. Foi mudada em um ano, para mais, para que o meu registro de nascimento tivesse um abatimento no cartório. Já era grande quando fui registrado, em Martins, onde havia o único cartório dessas redondezas. O tabelião, de nome João Paulo, era amigo de meu pai e o aconselhou a registrar seus filhos, dizendo que o homem que não era registrado era igual aos bichos que vivem anônimos… Foi o que ele fez, mas o dinheiro que tinha na ocasião não dava para batizar todos os filhos. Então o tabelião lembrou-se que, se ele aumentasse a minha idade em um ano, teria um abatimento, pois a lei que tornava o registro obrigatório dava aquele beneficio. Criança nascida antes daquela data pagava menos porque essa lei ainda não tinha sido criada para o governo tirar o dinheiro do povo. João Paulo era muito inteligente e aconselhava que as pessoas tivessem vários nomes, para não serem encontradas em caso de pendenga com a justiça. Por isso, muitas vezes, a mesma pessoa aqui é conhecida por vários nomes, como deve ter notado, o que cria a confusão… Aqui é difícil, sem esforço, identificar uma pessoa mais velha. Da minha geração para trás muitos conservaram o costume de ter vários nomes… Não admira que o senhor tenha ficado embatucado na hora de fazer suas entrevistas…

Nunca cobicei o alheio nem a mulher do próximo. Tive catorze filhos do meu casamento com Maria Rita da Conceição, com quem me casei em 1949. Não me arrependo de ter casado. Agora, para o seu governo, afirmo por experiência que a convivência entre homem e mulher é difícil. Tão difícil quanto viver dentro da norma. Nessa idade, penso que só conseguimos fazer essa longa travessia que é a vida porque ainda tem muita gente boa no mundo. Para mim, que por temperamento não aprecio o mal e gosto de respeitar para ser respeitado, não há gente ruim. Há momentos ruins na vida de todas as pessoas. Porém vida boa é aquela com a qual a gente se conforma. Esta sim.

Toda vida fui pobre e nunca me desesperei. Sempre acreditei em Deus e no dia de amanhã que é sempre novo e traz novas esperanças para nos alforriar do sofrimento que cedo ou tarde chega para todos.

Hoje meus filhos estão criados e eu dou sempre a benção de Deus a todos eles que são sangue do meu sangue e carne de minha carne. Além disso, penso que quem é abençoado salva-se antecipadamente…

Ah, não acha o senhor que já falei de mais por hoje? De minha parte acho que falei demais para o senhor fazer o seu bordado de palavras. Vamos botar um ponto final nessa conversa. Fiz a minha parte. Agora faça a sua, escrevendo. Quem escreve tem coragem de mamar em onça. Deus o abençoe.