*Edgar Barbosa
I
Leonardo da Vinci é uma figura a quem temos de considerar, depois de quinhentos anos, em projeções de astronomia: solitário planeta que reaparece em singular conjunção com os problemas e as inquietações da nossa época. Não é daqueles sob cujo nome se deva escrever apenas duas palavras, um epitáfio ou uma legenda. E talvez seja ele, a esta hora, o personagem histórico mais rico de sugestões para um indivíduo de quando em quando influenciado pela herança do tempo em que preferiria ter existido.
Há em vária gente, com relação ao seu meio, esse aéreo sentimento de ausência ou de exílio, nos levando a supor que muitos não nascem quando deveriam nascer e que, na prisão ecológica onde a vida os confinou, guardam a saudade de algum sítio ignorado.
Maravilhosa é a história da Grécia e de Roma; grande aventura foi a descoberta da América; e, no entanto, andam por aí os que, se acaso encontrassem uma pobre ilha sem passado e sem glória, nela seriam felizes de viver a incerta fração de tempo que lhes cabe. Olavo Bilac exprimiu em um soneto esse irremediável desgosto.
De Da Vinci, porém, pode-se afirmar que nasceu na hora e no lugar exatos para o seu gênio. No momento em que os turcos de Mahomet II se aproximavam de Constantinopla, destruíam o império bizantino e vibravam o derradeiro golpe na Idade Média. E no lugar em que homens tocados por uma graça inesperada, já haviam surgido.
II
Cheia de viajantes está a Idade Média. Dante faz a viagem mais terrível. Marco Pólo, a mais fantástica. Um mundo alvissareiro ia explodir das nuvens sanguíneas daquele crepúsculo. Fernão de Magalhães desvendaria o globo até então nevoento e inacabado. A bússola e a imprensa mostrariam caminhos infinitos à coragem de enfrentar os oceanos da água e do pensamento. Sixto IV, Júlio II, Alexandre VI e Leão X convertiam a arte e recobriam de jóias a Igreja, protegendo os gênios que transpunham os seus prontificados como forças da natureza.
Um rei da estatura de Francisco I, que foi, certamente, o soberano mais civilizado do seu tempo, dizia a Benvenuto Cellini: “Eu não sei quem pode ter maior satisfação, se um príncipe que encontrou um homem à medida do seu coração, ou um artista que se depara com um príncipe de quem deve esperar a fácil realização dos seus grandes e belos pensamentos.”
A Itália ainda era, durante o Quatrocentos, um aglomerado informe de cidades entregues à sanha feudal. Os Sforzas e os Médicis foram bárbaros intensamente apaixonados pela Arte, e essa paixão se revestia de caprichos doentios, que não preciso recordar, lembrando apenas que todos aqueles sublimes esbanjadores de mármore tiveram a preocupação da imortalidade.
III
A Idade Média, entretanto, no último quartel do século XV, perdera as forças reguladoras da sua vida moral. O mundo recém descoberto ia ser partilhado entre dois senhores, pelo tratado de Tordesilhas. Alexandre VI, abençoando os mares libertos do gigante Adamastor e da fúria dos deuses gregos, traçara sobre o Oceano Atlântico, do pólo Norte ao pólo Sul, uma grande linha apaziguadora. Foi então que os povos europeus, atirando-se à aventura das novas terras e julgando encontrado o seu “El Dorado”, repudiaram a humildade cristã. Já não era o magnífico impulso das Cruzadas, o ardor de Pedro, o Eremita, sublimados depois na febre heroica de Inácio de Loiola.
Uma raça desvairada fugiu à tranqüilidade e ao silêncio, correndo para as praias ocidentais. Ostentando orgulhoso desprezo pela crença dos seus maiores, decidiu, como hoje parece aos discípulos de Sartre, que “o inferno são os outros”, isto é, os que esperam de frente a tempestade. A Europa que se acabasse, o mundo antigo que ficasse para trás.
Pretendia-se que, além do ponto equinocial, nada era crime, não havia culpa nem pecado. Os instintos poderiam ser satisfeitos de qualquer modo, ainda que perecessem as velhas fontes da disciplina e da meditação. Desde esse momento – quando deixou de realizar o cristianismo na vida – a Idade Média viu crescer sobre a sua ruína um segundo humanismo, filho rebelado da traição ao ascetismo e à escolástica. Foi uma trágica reviravolta, o materialismo que os videntes há longo tempo vinha anunciando se pôs a representar o homem sem deus ou contra Deus.
Não precisamos de ir muito adiante. O pensador daquela decadência foi Maquiavel, o seu herói, César Borgia. O tipo do cavaleiro bem dotado passou a ser o que possuía a força e a astúcia a serviço do egoísmo e do poder.
IV
A página admirável de Roland Mousnier, o emérito professor de História da Sorbonne, recapitulando o período do Renascimento no século XVI deve servir de ilustração a esse intróito. “O Renascimento” – escreve Mousnier – “está ligado à existência de um tipo de homem no qual fervilha uma poderosa vida animal e cujos sentidos palpitam. Trata-se de um tumulto das faculdades intelectuais e de um pulular de imagens violentas, que se verificam mais nos guerreiros e nos artistas do que nos magistrados e nos negociantes, mais nos italianos do que nos flamengos e mais em todos eles do que nas categorias correspondentes de qualquer outra época. Estes homens apreendem o mundo exterior em cujos instantâneos, que não analisam e que se impõe à sua consciência até surgir a nova emoção: são violentos, repentinos, extremos, móveis e contraditórios, desconcertantes. Espantosamente prontos na irritação, na injúria, no desembainhar da espada, são capazes, logo no instante seguinte, de se abraçarem, se acarinharem e se elogiarem loucamente. Depois, por um nada, um olhar ou um arranhão, surge de pronto o punhal. Devotados impulsivamente e capazes de uma traição com a mesma rapidez, heróicos, com períodos de estranhas fraquezas, humildes, com reviravoltas súbitas, choram como crianças e morrem com o riso nos lábios.”
V
Homens assim, vivendo entre o sublime e o fantástico, inflamavam as escolas com o seu exemplo, fazendo de um estilo de vida um movimento literário e artístico.
Bem que podiam fazê-lo, quando se chamavam Erasmo e Bacon, Rafael Sanzio e Shakespeare, Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci. O estudo, liberto da escolástica, mas entrelaçado ao espírito do Cristianismo, em que os reis dilatavam a fé e o império, abria os mundos da terra e do pensamento.
Estudar não era uma obrigação, era uma cruzada. Em Paris, no Colégio de Coquerel, Daurat, nomeado principal em 1547, lia os gregos fervorosamente, consumido por uma chama interior e compunha em latim, em grego e em francês mais de cinqüenta mil versos. O ardor no trabalho era extremo, conta-nos Mousnier. Por toda parte, para os alunos de todas as idades, mesmo de doze anos, considerava-se normal o período de dez horas diárias de estudo efetivo. Henrique de Mesmes, futuro magistrado e diplomata, que com quartoze anos já estudava Direito na Universidade de Toulouse, escrevia:
“Levantamo-nos às quatro horas e, depois de rezarmos, seguíamos às cinco para as aulas, com os grandes livros debaixo do braço, as escrivaninhas portáteis e as candeias na mão. Seguíamos vários cursos, até dez horas, sem interrupção. Depois de passar meia hora a corrigir nossas notas, íamos almoçar. Após o almoço, líamos, como recreio, Sófocles, Eurípedes, Demóstenes, Cícero, Vergílio ou Horácio. Às cinco da tarde regressávamos à casa para rever as notas e controlar as passagens citadas no curso. Esse trabalho tomávamos o tempo até às seis. Depois, íamos jantar e líamos grego ou latim.”
VI
Foi com a energia e o sentido de uma busca do homem como ser espiritual, um propósito já inscrito no ideário das primeiras Universidades, que o humanismo procurou os mananciais da filosofia grega. O humanismo renascentista representa uma volta às fontes gregas pelos caminhos da filosofia árabe. Teve o estilo de uma subversão contra as limitações impostas ao pensamento pelo dogmatismo da Idade Média. Daí a eloquência com que afirmou a liberdade criadora do homem, a autonomia da razão, promoveu a destruição do absolutismo e declarou guerra às tiranias do sangue e da força.
O humanismo do século XVI, o humanismo de Leonardo da Vinci, é sobretudo um processo de reconquista e aperfeiçoamento do homem, que se volta de novo para si mesmo e tenta disciplinar ou corrigir a exuberância vital que abrasa a sociedade inteira.
[Continua]