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Um homem do Renascimento (2-3)

Produto e síntese de uma época, nada encarna melhor a Renascença do que o ser múltiplo que foi  Leonardo da Vinci, misto de artista, escultor, inventor, escritor, engenheiro, gentil-homem e político cuja glória sobrepujou os séculos, sem que alguém se lhe comparasse em grandeza. Nessa conferência proferida pelo humanista Edgar Barbosa, em 24 de Agosto de 1952, na Escola de Serviço Social de Natal, em comemoração ao 5º centenário do nascimento de Da Vinci sentimos que ainda há muito a dizer sobre tal personagem.

*Edgar Barbosa

VII

É certo que se costuma ainda hoje detratar da Idade Média, cobrindo-a de trevas e de crimes e insinuando-lhes todas as características do obscurantismo. Esquecendo-se, então, como disse Berdiaeff, que ela não foi treva, foi noite. E que embora o Renascimento só invoque a Antiguidade, ele é realmente “o filho ingrato da Idade Média”, na expressão de G. Beaujouain.

Talvez que o grande milênio, como pensa Salvador Minguijón, o professor da Universidade de Saragoça, seja mesmo um “edifício a concluir”. Corre-nos o dever de terminá-lo, aproveitando seu realismo vivo, submetendo-o a disciplina e ao sentido universal e humano dos nossos dias.

VIII

É natural que Leonardo da Vinci tivesse presenciado essa transformação, sob tantos aspectos coincidente com os desmoronamentos que nos ameaçam. Ele foi uma testemunha que não fugiu, teve fé em que nem tudo se perdera, viu a imagem do todo universal, os fins humanos e a intenção divina proclamados por Santo Tomás.

IX

Uma sepultura cristã das catacumbas de Roma, conjurava os profanadores com esta inscrição: “Se algum ímpio violar este túmulo, que morra depois de todos os seus.” Porque, alguém já o disse, o maior castigo não é durar mais, mas antes ver desaparecer tudo em volta de nós.

Da Vinci sobre este castigo, assistiu, na velhice, ao fim do seu mundo. E agora dir-se-ia que ele permaneceu todo esse tempo sobraçando as suas fórmulas e os seus planos, contemplando, em silêncio, nossos temores e aflições. Pois chegamos, como pretende Nicolau Berdiaeff, inspirado naquele pressentimento que atormentou Dostoiewsky, ao limiar de uma outra Idade Média.

Há, de novo, uma revolta contra o homem, que se sente asfixiado pela sociedade técnica, milionária de conforto, mas vazia de espírito. A rebelião dos dínamos e dos engenhos arquitetados pelo industrialismo, torna-se a catástrofe dos nossos dias. Na corrida nuclear e nas competições espaciais, os países mais poderosos da terra tentam superar os sonhos mais ousados. E ao mesmo tempo, há conflitos de jurisdição diante de um muro, perigosas querelas paroquiais envolvendo o destino da humanidade inteira, esquecidos os estadistas e os líderes de que sobre as nossas cabeças pairam os astronautas.

X

A observação é de Virgil Gheorghiu: a luz do gás “néon” é incapaz de iluminar os caminhos do espírito e as artérias do coração. Ela se esbate sinistramente sobre as paredes dos laboratórios onde, os subterrâneos americanos ou nas cavernas dos montes Urais, invocam-se forças diabólicas. Pesquisa desvairada e suicida, esta é um sintoma de que nos precipitamos na vertigem de uma transição desesperada. E já agora se faz preciso não entregar Berlim, não perder nenhuma das cidades marcadas para serem Bizâncio ou Jerusalém.

O escritor rumeno da “Vigésima Quinta Hora” profetiza: “A sociedade técnica perecerá também. Esse desabamento improrrogável será seguido pelo renascimento dos valores humanos e espirituais e não será a Rússia que nos salvará.”

XI

Uma inconstância aventureira, um poder criador impaciente, a tentação de prender para logo em seguida libertar a sua mosca azul, são as marcas do espírito de Da Vinci. Ele próprio, segundo um dos seus mais íntimos discípulos, não procurou outra coisa senão o impossível, não desejou senão o inatingível. E assim tudo deixou por concluir, arrancado sempre dos seus desígnios pela aura de insatisfação que nunca lhe permitiu imprimir a nenhuma obra o seu toque final.

Matemático, engenheiro, músico, arquiteto, ele tonteia, como um pássaro ferido, entre as nuvens da ciência e da arte. Depois de expor em cinqüenta páginas dos seus manuscritos, uma teoria sobre as fases da lua, apresenta fórmulas de fabricar perfumes, planeja a construção de barcos submarinos, prevê a conquista do ar, desenha novas máquinas de guerra, empenha-se em trabalhos de hidráulica e fortificações. Fez-se o Júlio Verne de uma época em que ainda se desconfiava da redondeza da terra.

Chamaram-no de feiticeiro e de louco. É provável que tenha sido, no tempo em que a alquimia de Raimundo Lulo buscava, alucinada, o elixir da longa vida e a extração sintética do ouro. Mas, a luz da sua feitiçaria e o incêndio de sua loucura são ofuscadores. Iluminaram, como relâmpagos, a câmara mortuária da Idade Média.

[Continua]

Em destaque, maquina voadora, desenho de Da Vinci que teria inspirado a criação do helicóptero alguns séculos depois; acima, autorretrato do artista.