*Edgar Barbosa
XII
Eis quem foi o homem. Príncipe da Dinamarca ou palhaço de Heine, diante dele é inútil esconder nossa perturbação. Junto ao fantasma envolto na cinza dos séculos, não podemos descerrar abertamente os olhos. Ele, que deixou escrito – “Artista, a tua força está na solidão” – frase que Ibsen repetiu em um dos seus dramas, não era um concentrado. Os antigos também se mascaravam. E, num desmentido ao seu pensamento, Da Vinci se move, no espantoso cortejo de gênios da Renascença, em visível contraste com Miguel Ângelo. Este, melancólico e retraído, vivia apenas para a realização dos seus sonhos grandiosos. Artista plástico, inamolgável como um cinzel, o monstro da Capela Sixtina exprimia sempre em ritus doloroso a força sombria das suas visões. Emil Ludwig comparou-o ao Prometeu de Goethe. Formava os homens à sua imagem, criaturas nascidas para a expiação em algum rochedo.
Leonardo, mais mundano e romântico, embora trinta anos mais velho que Miguel Ângelo, nos deixa em suas telas indefinível sentimento de ternura. Os vultos de Miguel Ângelo denunciam a infeliz história do seu mundo interior. As imagens de Leonardo estão sempre em êxtase, e, mesmo tristes, sorriem para algo invisível e distante.
XIII
Da Vinci não foi um desenhista à moda dos primitivos, que colavam ao fundo da tela os seus personagens. “Claro-escuro” talvez seja o composto que melhor exprima as nuances de luz e sombra experimentadas por Giotto e que caracterizam os quadros de Da Vinci. Ele e depois Rembrandt conseguiram nos dar a ilusão de que as suas figuras estavam cercadas de espaço, tornaram-nas independentes do plano, criaram na pintura uma terceira dimensão.
Uma das injustiças deitas a Da Vinci foi a de afirmar-se que a “Última Ceia” não tem vida nem expressão dignas do instante em que Jesus se despede e anuncia o seu sacrifício. Diz-se, por exemplo, que a matemática premeditada e fria apagou na tela a beleza do conjunto. Falta-lhe a presença da divindade, o artista foi por demais geométrico. As menores rugas dos rostos, todas as dobras da toalha da mesa, não foram sentidas e sim fotografadas. Quadro vulgarizado em milhares de cópias, legítimas ou contrafeitas, o estamos vendo em que todas as salas. Mas, que milagre de perspectiva, que domínio das leis da luz e da sombra! Basta olhar a máscara esquiva, fugidia de Judas. O bem absoluto é a figura de João; o enlevo do amor está na face adolescente de Felipe. A fé, em Tiago, o raciocínio, em Tomé, a justiça no rosto velho de Pedro. A geometria não está capaz de criar sozinha esse grupo suspenso entre o céu e a terra.
XIV
Aos cinqüenta anos Da Vinci encontra em Florença Mona Lisa Gioconda. Assim como é impossível falar-se em Dante sem Beatriz, impossível falar-se em Da Vinci sem Gioconda. Eles entram de mãos dadas na imortalidade.
A jovem senhora napolitana que foi um dia ao “atelier” do mestre posar para um retrato, morreu pouco tempo depois – a História tem dessas minúcias inexplicáveis – de febre palustre ou de uma infecção na garganta, em triste aldeia do sul da Itália. De certo jamais pensou que o seu rosto de enclausurada e o seu sorriso de convalescente, seriam estudados e discutidos linha por linha, nas galerias de arte e nos tratados de psicanálise.
Mona Lisa não era da classe daquelas mulheres da Renascença que se denominavam “heroínas da cultura”. Falava com simplicidade e muitos ignoravam suas prendas literárias. Somente por acaso foi que o seu pintor descobriu que ela traduzia latim e grego, em pleno resplendor do dialeto toscano. Pareceu ao artista que Mona Lisa possuía uma coisa mais profunda do que o intelecto, uma sensatez, uma sabedoria quase oracular. Tinha frases que estabeleciam subitamente uma afinidade com ele, que a aproximavam dele mais do que todas as outras pessoas suas conhecidas, fazendo-a sua companheira e irmã. “Nesses momentos – o próprio Da Vinci o confessa – “tinha vontade de transpor o círculo encantado que separa a contemplação da vida. Imediatamente, porém, reprimia esse desejo; e cada vez que matava no seu íntimo a beleza viva de Mona Lisa, a imagem imaterial, na tela – a imagem que ele havia evocado – se tornava ainda mais impregnada de vida, vida mais verdadeira.” (Merejkowski).
XV
No romance de Virgil Gheorghiu, já referido aqui, dois personagens, o escritor Traian Koruga e sua noiva, Eleonora West, querendo fugir a pensamentos negros, ficam no escritório, depois do almoço, vendo os livros e os quadros. Param um pouco diante de um quadro de Picasso. “Eleonora West olhava para o quadro que representava uma mulher a tal ponto desfigurada pelo sofrimento, que o seu rosto já não tinha nada de humano. Era uma visão de carne dilacerada, um retrato de mulher que a dor desmontara como uma máquina. Restavam-lhe apenas os elementos essenciais: os olhos, o nariz, a boca, as orelhas. Cada coisa vivia isoladamente, de uma vida individual. Haviam se repelido à custa de tanto sofrimento.”
O retrato de Gioconda, transfigurado na máscara mutilada de Picasso, seria a interrogação final de Da Vinci entre duas tardes, a do seu mundo e a da sua existência. Ou talvez que o mestre houvesse pretendido assinalar, no rosto de Monna Lisa, não só a sua dor, mas tudo quanto viesse a sofrer a humanidade futura.
XVI
A 24 de abril de 1519 – era um domingo de Páscoa – da Vinci já não via nem ouvia mais nada. E inesquecível a página de Merejkwski ao reconstituir a morte do gigante:
“Parecia-lhe que pesos inacreditáveis, enormes blocos de pedra, estavam caindo, despencando sobre ele e esmagando-o. Queria erguer-se, livrar-se daquilo – e, subitamente, num esforço final, libertou-se, elevando-se sobre asas gigantescas. Mas, de novo, as pedras despencavam, amontoavam-se, comprimindo-o. lutou novamente, saiu vitorioso, e ergueu voo. Porém cada vez o peso era mais e mais terrível, o esforço mais e mais insuportável. Finalmente, sentiu que já não podia lutar, e, com um derradeiro grito de desespero – “Meu Deus!” – submeteu-se. E logo que se submeteu-se, compreendeu que as pedras e as asas, a pressão do peso, e a ânsia do vôo, eram uma única e mesma coisa – tanto fazia voar como cair. E ele voava e caia, sem saber mais se estava sendo balançado pelas ondas tranqüilas do movimento perpétuo, ou se a sua mãe o embalava nos braços, cantando-lhe uma canção de ninar”…
Morreu acorrentado pela angústia que ficou, até os nossos dias, sobre a terra dos homens. O peso que ninguém sustenta, a ânsia do voo e o desengano da queda, ai estão, quando se proclama que alcançamos o cosmo e respiramos, de uma só vez, todo o infinito.
Os novos cometas pressagiadores, a espionarem a inocência do céu, não nos prometem paz. Outras máquinas de hecatombe, sinistros autômatos emboscados entre jardins, arquejam por destruir, enquanto o coração, que é sempre o mesmo, finge tranqüilidade.
XVII
Não será absurdo prever-se que dentro em breve a nossa época se exprima por outra forma diferente da palavra meramente escrita. O cinema, o rádio, a televisão, a máquina de gravar e até mesmo instrumentos que dispensam o raciocínio e eliminam a emoção, se acham mais próximos da nossa vida do que qualquer texto impresso em uma página. Mas, seja qual for o meio de transmissão intelectual que se empregue, o grande intérprete da vida humana neste cansado século há de estar em íntimo contato com os problemas centrais do homem.
Dizia ainda há pouco André Malraux, no discurso de agradecimento à láurea que lhe conferiu a Universidade de São Paulo, que a humanidade não é grande senão quando marcha ao encontro do seu sonho. Na civilização que começou conosco, o mundo técnico se julga senhor absoluto dos sonhos, mas e é muito menos do que pretende ou ambiciona. E não comanda o sonho. Essa promessa que o Humanismo nos trouxe, é invencivelmente renascente, e por causa dela descobrimos outra vez aquelas forças misteriosas que a humanidade escolhe sem conhecer nem investigar e que já palpitavam os impérios antigos, entre os sumérios e os egípcios, antes que Homero as decantasse em verso e Platão tentasse enuncia-las nos diálogos de sua imortal filosofia.
XVIII
Não há nestas palavras nenhum sinal de descrença ou desalento. Primeiro – acreditei no auditório, que conforme disse André Maurois, louvando o público francês. “não teme as verdades pessimistas”. Segundo – não estamos tão seriamente feridos que nos seja impossível escapar.
Na hora em que alguns sonhos de Da Vinci se fizeram realidade, por vezes trágica e brutal, pode-se até pretender que ele volte – como os formidáveis transeuntes do espaço – para nos interrogar e advertir. Não devemos esperar que isso aconteça. É mais humano que o gênio continue, entre a ronda longínqua dos astros, vendo a terra assim como os marinheiros supõem ver nos negrumes do mar o corpo encantado das sereias.
.Conferencia lida a 24.08.1952, na Escola de Serviço Social de Natal, em comemoração ao 5º centenário do nascimento de Leonardo Da Vinci.
