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Um homem e seu destino

Dentre os decanos do jornalismo potiguar, Cassiano Arruda Câmara se destaca por manter-se lúcido, movido e animado com a realidade. Por uma grande energia intelectual que transforma experiências em ações, Cassiano Arruda Câmara inspira texto do Fundador Navegos.

Franklin Jorge

Conversamos uma noite em seu jardim, numa sala íntima e em torno de uma mesa, enquanto tomávamos sorvetes. Conforme avisei, chegaria após o jantar. Antigamente, dir-se-ia abençoado pelos anjos. Nasceu e cresceu na abastança: os pais, chefes políticos. O pai, deputado estadual; a mãe, prefeita de Nova Cruz. Ele nasceu aos 16 anos. Esbarrou bem cedo pela Política e o Saber ao abraçar a campanha de Dix-sept Rosado ao Governo do Estado. Sentiu que era um animal político. Porém Aluízio Alves ensinar-lhe-ia a política. A política e a publicidade eram suas obsessões.

Inicia uma relação de amizade com Luís da Câmara Cascudo, que em sua mocidade de rapaz rico passava o inverno em Nova Cruz. Ali passava o inverno o compositor Oswaldo de Souza, da Família Ferreira de Souza em cuja mansão, em Petrópolis passou a mocidade, escrevendo e compondo, dentre suas obras-primas, Pingo d´água, na inesquecível interpretação de [x].  Suas mulheres, Dona Lourdes e Dona Dahlia, tornaram-se amigas.

Teve Cassiano a felicidade, ainda moço, de conviver com excepcionalidades, a Política o Saber. Aluízio Alves e Câmara Cascudo, que durante anos passara a estação chuvosa em Nova Cruz, cidade movimentada por um bem-sucedido entroncamento ferroviário, unia e fazia o progresso duma região onde o comércio se expandia. Tornou-se um observador perspicaz, entre homens de ação e ideias, passou a observar mais. Como Maupassant, observava e voltava a observar tudo de novo.

Suave e perfumada é a noite ao pé do morro, na alameda que tem uma única residência e homenageia seu nome de família. Rescendendo a dunas úmidas. Aos sortilégios da noite, enfim, lembrou-se que em 1950, tornou-se orador em comícios, ao lado do candidato a governador, Dix-sept Rosado. Mossoroense, ex-prefeito de Mossoró, tornara-se popular e querido pelo povo. Era o mais popular dos Rosado. O que tinha contato direto com o povo.

Houve um comício em Nova Cruz e me dispus a falar, querendo talvez produzir um discurso especialmente ao povo de sua terra. A partir daquele momento, sempre que havia comícios, Cassiano discursava, entusiasmado. Sempre que o meu pai era convidado para esses comícios, já vinha implícito o convite “ao seu menino”. “Traga o seu menino”.  Entendia-se que o menino era eu, apesar de meus 16 anos.  Queria fazer política, atuar e ter responsabilidades. Uma experiência fantástica para um menino de 16 anos, participar de uma campanha eleitoral histórica. Marcante.

O governo de Dix-sept Rosado durou apenas seis meses. Ele não quis mudar-se para a Vila Potiguar, residência oficial dos Governadores. Foi morar no Grande Hotel, endereço de prestígio. Ali, enquanto deputado, meu pai já morava no Grande Hotel, para onde me mudei aos oito anos para estudar. Lá  morava também o filho do governador eleito, Carlos Alberto Rosado. Ficamos amigos por essa época.

O avião em que viajava Dix-sept com secretários e amigos caiu no rio do Sal, em Sergipe. Terminou assim um governo de esperança que mal surgia. Foi uma grande consternação. Assumiu o vice, que não tinha carismas.

Aos oito anos fui aluno interno do Colégio Sete de Setembro, à Rua Seridó, em Petrópolis. O diretor era o Dr. Francisco Nogueira Fernandes, grande figura humana. Chegou a ser Procurador no Governo do Prof. José Cortez Pereira. Era casado com Dona Mariquinha. O casal não tinha filhos e afeiçoou-se a mim. Sua esposa era filha do renomado professor e historiador Nestor dos Santos Lima, do nosso Instituto Histórico e Geográfico. Oriundo do município do Açu, e irmã do embaixador Santos Lima, historiador e ambientalista. Eu era tão pequeno, pelo menos em idade, pareci-lhes uma espécie de filho elegido. Não me faltava carinhos e atenções. Em 1953 o Colégio fechou o internato. E eles quiseram que eu permanecesse lá com eles. Em 1960 fomos transferidos para a Rua Apodi, de 70 a 80 internos na faixa dos 10 anos de idade. Essa experiência me fez aprender a como me virar por minha conta e risco.

Saía aos domingos para almoçar na casa de meu Correspondente, o representante de meu pai em Natal. Essa figura – do Correspondente, do Correspondente Comercial, do Tutor -, havia naquela época. O meu era Hugo Manso. Num feriadão, passei na casa de minha tia Terezinha. Sua casa era uma espécie de Clube Literário. No Marista, para onde fui transferido como interno, pertenci a seção infantil da Arcádia Natalense. Nós nos tratávamos com solenidade, “nobre árcade”. Em 1958 participamos de uma coisa muito interessante. A Siam [?] promoveu uma Semana de Estudos Literários. Quando entrei pela primeira vez na casa do escritor Luís da Câmara Cascudo, nessa ocasião percebemos que o RN não tinha Bandeira nem Hino oficiais. Fomos a Cascudo e ele resolveu tudo.

Mas, voltemos a 1959. Mamãe era prefeita e Aluízio preparava sua candidatura a governador.  Promoveu lá, em Santa Cruz, um encontro de prefeitos para discutir soluções para o Rio Grande Norte. Seu intuito inconfesso era a preparação de um plano de governo com o concurso dos prefeitos ali reunidos. Foi nessa ocasião que Aluízio e eu nos conhecemos, de fato.

Aluízio Alves falava de realizações e conquistou-lhe a atenção.  Depois desse encontro, passei a receber telefonemas dele. Tocava o telefone lá de casa e, do outro lado, ele se identificava: “O Deputado Aluízio Alves quer falar com você”. Passei a orador de seus comícios, no Trem da Esperança, em roteiro do Agreste Potiguar. Discursava nas estações em prol do candidato a governador e seus projetos de governo.

Aprendi muito muito nesse convívio com Aluízio, que se elegeu governador.  Empolguei-me com andar de paletó e gravata, em sendo Oficial de Gabinete do Governador, mas meu pai foi contrário a essa ideia e achou um jeito de mandar-me estudar o Científico em Salvador. Uma cidade de 400 mil habitantes. Lá conclui o Curso Científico. Lá, aos 24 anos, perdi a virgindade. Por essa época em que estudei em Salvador, sempre via Jorge Amado às portas da Livraria Civilização Brasileira, conversando com circunstantes. Era uma Bahia ainda bem viva nas personagens de Jorge Amado.

Passei dois anos na Bahia sem fazer absolutamente nada. Num momento culturalmente novo, muito rico e inovador, do qual participavam, dos começos do Cinema Novo, quando Riberto Farias filmou em Salvador e Glauber Rocha fez Barravento. E, de Anselmo Duarte, O pagador de promessas, numa época em que Caetano morava em sum Pensionato na rua General Labatut, 49, em Barris. Havia um outro pensionato na mesma rua, de número 14, administrado pela mãe de Glauber, onde moraram dois amigos meus, Tomás Salustino Neto e Sílvio Salustino. Estudava no Colégio Ipiranga. Lá, em Salvador, me tornei homem. Desfrutado do amor mais puro; o amor pago.

Havia alegria nos cabarés que lá se chamavam Castelos. Lá, me libertei. Não era filho de ninguém, e não me faltava dinheiro. Meu pai continuava pensando que eu seria um grande médico e teria futuro na política. Terminei o Científico, mas não me achei em condições de concorrer ao vestibular de medicina. Era o fim de 1962. Em fins de 1963, criou Aluízio, governador, a Faculdade de Jornalismo e chamou Luís Lobo para dirigi-la. Não tive como não fazer esse vestibular. Reencontrei dois amigos, então, Luís Sérgio Medeiros de Oliveira – Lula. – O Lula do bem, ressalte-se; e Cláudio Emerenciano. Nessa época, em Natal, a melhor sociedade se reunia no salão de Maria Boa, dona de uma casa decente. Era uma espécie de clube.

A primeira turma de Jornalismo era constituída por poucos jovens.  Não chegava a dez. Havia, entre esses formandos, desembargador juízes, funcionários do Banco do Brasil, militares; um desses foi meu carcereiro, quando fui preso pela de Revolução. Você não conseguia achar um denominador comum. Quanta gente de repente queria ser jornalista.

Fernando Luís Cascudo fundou nessa época um Instituto de Pesquisas. Ele foi à faculdade procurar pessoas para sua equipe na Vésper Propaganda. Acabei indo trabalhar com ele. Ganhava 16 contos de reis, trabalhando com propaganda. Devo muito a Fernando. Quando foi para a revista Manchete, me chamou para ser seu correspondente aqui. Estava com as duas mãos no jornalismo.   A amizade do filho aproximou-o do pai. Cascudo é sombra benigna na alma de Cassiano. Sonhavam com mandatos de senadores da República, Câmara Cascudo e Newton Navarro, dois grandes tribunos. Um dia Fernando disse-me, vou leva-lo à casa de meu pai. Num dado momento a Vésper Propaganda foi contratada pelo governador Aluízio Alves.

Indignado com o governo de Aluízio, meu pai, deputado, onde achava que tinha prestígio e não conseguia o empréstimo de uma Patrol para sanar uma passagem, uma estrada atolada, mesmo com o aval do governador. Minha mãe, prefeita de Nova Cruz, estava preocupadíssima, esperando o pior. Sobretudo dos comícios noturnos no Trem da Esperança. Era preciso manter a segurança do povo nova-crucense e região Agreste.

Fui e obtive a Patrol com um amigo. Faltava à meu pai uma qualidade necessária ao político: a dissimulação. Era irritadiço e temperamental. Foi quando percebi que a política podia ser uma coisa boa. Ele bancava a própria candidatura. Investia muito dinheiro nisso. Gastava seu próprio dinheiro, como muitos faziam antigamente.

Voltemos a Cascudo. Quando voltou à presença de Cascudo e desde então ficou estabelecido que todas as terças e quintas-feiras, o nosso expediente começaria as 14 horas.eu precisava estar ali, nesses dias, à serviço de Cascudo.

Pegava as cartas que ele tinha de postar, recolhia a correspondência e encomendas da Caixa Postal, em seguida ia à rua Duque de Caxias, na Charutaria de Seu Maia, duas caixas de charutos. De volta, entregava-lhe a correspondências e demais volumes. Às vezes ficamos jogando conversa fora. Às vezes era convidado para a ceia. Uma vez, dentro de meu fusca, conversamos até as 2 horas da manhã…

Quando Arturo, meu filho, tinha seis anos, disse-lhe: vou leva-lo para conhecer uma casa e um homem, Câmara Cascudo. Arturo tinha seis anos. Queria que ele conhecesse as riquezas daquela casa e a sabedoria de um homem.

Meu pai queria fazer-me médico. Achava que um médico já teria um natural cacife político. Não me encantei com a medicina. Tenho irmãos médicos que entraram na política. Eu, de todos, queria ser o político. Não fui político.

Tornei-me o que sou.