*Franklin Jorge
Enquanto espero o ônibus, sentado num banco da suja e inóspita rodoviária do Açu, sou saudado por um velho pequeno e cheio de vida, que se admira com o fato de eu ler e escrever em meio ao bulício. A princípio, concentrado na releitura de “O Santo Sujo” – a biografia de um tio de uma querida amiga já falecida e autor de uma das mais belas e misteriosas contribuições de Jayme Ovalle a música popular brasileira, “Azulão” -, penso resistir à conversa que, a depender do quanto ainda tenho que esperar, deverá ser bastante longo. Por isso, decido-me a dar-lhe trela…
Não me diga que também vai para Campo Grande, ele o diz; nunca o vi por lá… Essa forma de mostrar-se curioso sem parecer demasiadamente curioso, dá-me a ideia de sua inteligência e, de repente, estamos em animada conversa, sobretudo porque, para mostrar-lhe que não sou alheio à história de sua terra, respondo-lhe sem responder propriamente à sua pergunta: Não me diga que é dos Pimenta! Era. Ah – acrescento! – Então deve ser parente do grande escritor Câmara Cascudo…Os Pimenta são uma família só, sejam chamados Cascudo ou não, responde-me discretamente, sem jactância. Câmara Cascudo, um nome que honraria qualquer família…
Segundo ele, só prospera quem tem boa fama. O nome, num homem, é tudo. E, sem jamais ter lido Nietzsche, acrescenta: Nome é destino. Um nome bem escolhido e bem conservado é meio caminho andado. Câmara Cascudo, portanto, um grande e ilustre nome, como há poucos atualmente. Até porque nunca teve inimigos. Quem tem inimigos tem pouco tempo. Precisa estar sempre alerta ou se defendendo e acaba não produzindo nada. Tudo isto vou ouvindo, no meio da tarde, sem contesta-lo e achando muito instrutivo.
Assim fiquei sabendo que por muito tempo ele foi morador do Sitio Morcego, uma légua depois da cidade de Campo Grande, já a caminho de Caraúbas, onde por muitos anos reinaram os Gurgel. Lá morava em sua época o velho Chico Zuza, que por qualquer coisa se desentendia com as pessoas e por isso teria granjeado desafetos em bandas de lata. Uma vez ele teria se intrigado com Neco de Tomé por causa de uma vazante à margem do açude do Morcego. Valentão, com umas toras de braços de meter medo, Chico Zuza meteu medo em Neco, que por natureza era medroso e, portanto, traiçoeiro. O covarde é sempre traiçoeiro e ele, Neco, passou a andar armado. Saiba o senhor que todo tipo de inimigo é ruim, mas se ele é medroso, torna-se ainda mais perigoso, pois o medo é cheio de astúcias e a astúcia é a arte do diabo.
Nesse tempo o velho tinha uma bodega na rua, informa. Pois bem: uma tarde, sobraçando um rebenque, Chico de Zuza entrou em minha bodega, pediu-me uma chamada de conhaque e disse que naquele dia, ele, ou Neco,, se tivessem a infelicidade de se encontrarem pelas ruas de Campo Grande, um deles, qualquer um deles, não voltaria para casa com os próprios pés. Percebi logo que alguma coisa ruim resultaria dessa rixa. O antigo bodegueiro, que se chama Francisco Antônio Pimenta, maior de 72 anos, ainda tentou dissuadi-lo, dizendo-lhe que deixasse disso; que bom mesmo era viver em boa paz com todos. Mas Chico de Zuza, bradindo o rebenque,reafirmou em voz alta sua disposição para a acerto de contas. Ainda me pediu outra chamada e depois de entornar a dose se despediu e montou no cavalo. Um pouco adiante, por malazartes do demônio, quem encontrou no caminho? Neco, Neco de Tomé, que vinha armado, de um daqueles revólveres de cano longo. Chico, do alto da sela, o desacatou. Neco, medroso como um pato, deu um passo atrás, mais outro e outros mais, sempre pedindo Calma, Chico, calma… Ao contrário, Chico de Zuza mais se alterava e alteava a voz, fazendo menção de descer do cavalo… Não lhe conto mais… Com a mesma rapidez com que o diabo coça o olha, Neco sacou da arma e deitou por terra o valentão, que voltou para casa com os pés dos outros.
Tudo isto aconteceu há muito tempo. Muito tempo, eu ainda era moço. Quando talvez o senhor não fosse nem nascido… Louvo-lhe a arte da conversa e ele, Francisco Antônio Pimenta, adorador de gatos e protetor dos bichos brutos aos quais dá água e comida quando aparecem em sua casa, diz que os mais velhos têm sempre boas histórias para contar… Quem vive muito ouve muito e sabe muito, arremata o papo. Mas, antes, faz questão de fornecer-me o seu endereço, pois que ter o prazer de receber-me em sua casa, em Campo Grande, à rua Dr. Júlio Rego 90.