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Um homem perto das palavras

Navegos transcreve entrevista concedida por seu Fundador a Thiago Gonzaga em 2016, originalmente publicada em O Santo Ofício e outros sites já extintos com o intuito de subsidiar futuros pesquisadores da Literatura produzida no Rio Grande do Norte nos últimos 50 anos.

*Thiago Gonzaga

Autor de um clássico da literatura potiguar, O Spleen de Natal, de vários títulos publicados e numerosos manuscritos inéditos, Franklin Jorge, 65 anos, abriu uma exceção em sua determinação de não dar mais entrevistas, por considerar que “já está dito tudo em seus livros”. Em seu último titulo publicado, O Livro dos Afiguraves, escrito à maneira dos folhetins antigamente publicados em jornais, delegou à sua amiga de muitos anos, Socorro de Figueiredo, atriz e personagem da obra, a incumbência de falar sobre o seu processo de trabalho, “porque não tem mais nada a dizer”, e a entrevista, em sua opinião, teria se “tornado refém de um questionário obrigatório que contempla sempre as mesmas perguntas” de ordem pessoal e cronológica, “em detrimento da exploração das ideias e do universo mental do entrevistado”. Também não quer ficar “se repetindo”, mesmo considerando que “a reiteração é um importante elemento que entra na elaboração da obra”. Ele refez suas respostas por três vezes, “por perfeccionismo recorrente”, alegando que esta pode ser sua última entrevista. Ele diz ter “horror a bandos e panelinhas”, preferindo “a obscuridade e o silencio” ao tumulto e às luzes da ribalta, como um fiel seguidor do conselho dado por um de seus mestres, o Prêmio Nobel Alemão Thomas Mann, que ele leu aos 14 anos: “É preciso morrer para o mundo para ser um perfeito criador.”

Abaixo, trechos da entrevista:

Franklin Jorge, onde você nasceu? Relate-nos um pouco da sua infância e juventude. Você guarda boas lembranças desse tempo?

— Nasci no Ceará-Mirim, mas, ainda menino de colo, fui levado por minha Avó para viver em suas terras no Vale do Assu. De certa forma, nasci no Assu, pois foi lá que fiz as minhas primeiras descobertas do mundo. Minha infância foi breve e intensa. Como a de todo menino que teve o privilégio de uma infância rural, o que me fez desde cedo ter um íntimo contato com os fenômenos da natureza e a diversidade da vida e dos seres, tão vários como há grãos de areia no fundo do mar.

E o período como aluno secundário, como foi?

– Uma época em que estive muito interessado em transcriações latinas, talvez para fugir um pouco do ambiente medíocre da escola. Em casa, estudava Horácio e Marcial com afinco. Mas, fui um aluno medíocre e desmotivado, exceto quando encontrava algum que me desviava daquele ramerrão pedagógico. tinha horror a tudo o que era convencional e corriqueiro. atraía-me desde moço a aventura, o desconhecido, o ignoto. Preferia meus professores particulares, como a minha Avó materna – grande ledora e cinéfila -, sabedora de Latim, que estudou com Francisco Ivo Cavalcante, advogado, famoso professor do escritor Luís da Câmara Cascudo; de Francês e Inglês, que estudou com o Professor Abner de Brito, antes de sua mudança para o Paraná, de onde jamais voltaria; de música, com o maestro italiano Tommaso Babbini, prfessor de canto em Natal, responsável pela ruína econômica do coronel Francisco Cascudo, ao requerer o pagamento judicial de uma pequena dívida que levaria o pai do nosso maior historiador à bancarrota. Maria da Glória Pessoa, Dona Glorinha, me preparou para o Exame de Admissão ao Ginásio, uma espécie de vestibular daquela época, descortinou-me o universo ibseniano, através do qual pude entender precocemente que a derrota do homem não invalida o seu esforço de mudança ou, como viria a aprender com Raymond Wilson, muitos anos depois, que a experiência da derrota não desmerece a luta. Aprendi assim que o fracasso é mais didático do que êxito. Portanto, nessa vida que já se vai tornando longa, tenho aprendido mais com o fracasso do que com o sucesso. Também guardo boas recordações de minha elegante professora de Português, Lídia Silveira, do Ceará-Mirim, que lia Shakespeare e me emprestou certa vez O Rei Lear, numa encadernação azul. Apreciava aqueles professores que me ajudavam a exigir de mim mesmo. Instintivamente, não acreditava em professores complacentes com as minhas deficiências e deles procurava fugir, por entender que não podiam acudir às minhas necessidades de ordem intelectual. De qualquer forma, a escola formal, foi para mim decepcionante.

Quais foram as suas primeiras leituras literárias?

– Creio que foi A História, de Heródoto, que li por exigência de minha Avó, por constituir um desafio intelectual, seja por sua extensão, vocabulário e temática que nos remetia à mais remota Antiguidade. Tomei essa leitura tarefa como um desafio. Vencer aquele calhamaço cheio de minúcias, num estilo há muito em desuso e cotejar a geografia da época com a atual, esclarecendo obscuridades, num trabalho que duraria mais de um ano e me levou a pesquisar e consultar muitos outros livros e mapas. Senti com isto que minha Avó queria fazer-me entender, na prática, a natureza do trabalho que me aguardava, caso persistisse o desejo que nutria de tornar-me escritor. Em seguida, descobri o Teatro Greco-Latino, o Teatro Clássico Francês, Inglês e Italiano. Comecei a conhecer Maquiavel por seu teatro. Resumindo, sei que comecei por me apaixonar pela literatura Greco-latina. Senti-me sempre gratificado porque foi assim. Começar centrado numa plenitude, isto é, na plenitude humanística de uma “Idade de Ouro” da Filosofia, do Teatro, da Poesia e da Literatura.

Sei que andei por muito tempo com esse livro, A História que despertou em mim a vontade de fazer. E, depois, com a crua comedia latina. Por isso, pude dizer em algum lugar que tudo começa pelo Teatro. Por muito tempo, aliás, quis ser dramaturgo. Cheguei assim a escrever algumas peças. Uma delas, Imperador Nero, um tanto plagiada de Alberto Camus e Eugene O´Neill, escrita entre os meus 16 e 17 anos, foi encenada no Colégio Nossa Senhora das Vitórias; performance registrada por Francisco Amorim em seu livro História do Teatro no Assu. Lia e relia Shakespeare e o Doutor Fausto, de Marlowe, que tinha a pretensão de encenar, peça que anos depois vi em Porto Alegre. Nessa idade, eu tinha uma vontade enorme de fazer parte da História. Minha utopia, além de me tornar um grande escritor, era de promover uma grande revolução cultural no Rio Grande do Norte. Por isso, juntava-me aos melhores e me esforçava para me tornar um leitor hipercrítico. Em 2010, numa fila de banco, reencontrei em Natal três ex-professoras, todas na faixa entre os 80 e 90 anos, que recordaram entre si quanto eu fora seletivo em minhas amizades, embora me desse com todo mundo… Agradou-me ouvir esse comentário feito por pessoas que me conheceram ainda muito jovem e cheio de esperança.

Líamos, nessa idade, o que havia de melhor da biblioteca universal. Nossos pais não regateavam preço em matéria de leitura de qualidade. Lemos o melhor de tudo e que, com o passar do tempo, vimos ser chamado de Clássicos. Imagine uma geração que leu Melville, Stevenson, Daudet, Wilde, Defoe, Cervantes, Alarcón, Voltaire, como autores de livros considerados “infanto-juvenis”. É escusado dizer que preferia o Cervantes das Novelas Exemplares ao do D. Quixote, que me pareceu insípido e sem graça. Depois, mais taludinho, li os grandes satiristas e mergulhei nas águas revoltas da literatura de cunho metafisico e existencialista. Na verdade, embora ainda sem ter lido Borges, lia tudo o que me dava prazer. Li Thoreau e os Românticos Americanos apaixonadamente e, através dessa leitura, deparei-me com a ideia da “desobediência civil”, que pude ver praticada por Sir Bertrand Russell, na época, um nome emblemático para os jovens do mundo inteiro. Li George Orwell, então ainda pouco lido entre nós.

Por essa época me impus desafios, eu mesmo, e adotei como modelo e mestre Thomas Mann, que me apresentou o conceito de “escritor-estadista”, algo que, incentivado por um ardente entusiasmo juvenil, adotei como uma premissa e um modelo a ser seguido. Por toda a vida, me identifiquei com Thomas Mann e tive em Tonio Kroger e o seu complemento, o velho escritor de A Morte em Veneza, “heróis literários”. Lia Baudelaire, que passei a admirar muito antes de ter lido sua obra apenas por uma frase sua que ouvi de um tio materno [“A poesia é a infância da obra”]. Passei a ler Marcel Proust, que se me descortinou através a leitura de seu ensaio sobre a Leitura, no qual pode dizer que “os livros nascem dos livros”. Como vê, eu respirava e me nutria então de Literatura.

E seus primeiros escritos, do que tratavam?

– Creio que seriam exercícios de imitação de poetas latinos, como ocorre aos principiantes. Por um tempo, dediquei-me com afinco a imitar o cubano Jorge Guillén [que Borges disse ser o “poeta da alegria”, e Garcia Lorca, Federico Garcia Lorca. Sobretudo em sua lírica gitana. Também queria ser Horácio, Baudelaire e Rimbaud. Já antecipava, em termos estritamente pessoais, aquela personagem de Borges que queria chegar a Cervantes escrevendo uma linha que coincidisse com uma linha de Cervantes. Dessa época lembro-me de uma ode em prosa à carnaubeira com a qual obtive um prêmio em torneio literário intercolegial, texto lido em praça pública, numa grande festa cívica que reuniu centenas de famílias na Praça Getúlio Vargas, no Assu.

Você chegou a conhecer Câmara Cascudo, nos fale da sua relação com ele.

– Desde muito cedo. A partir dos 17 passei a visitá-lo em seu velho solar. Me lembro que havia na parede, acima da cadeira de balanço que pertencera a seu pai, uma pequena e bela fotografia de sua neta Daliana que eu achava belíssima. Demorei, porém, a conhecê-la.  Cascudo era caudaloso; um mundo de ideias e cultura. Não dava para conhecê-lo, certamente. Lembro-o como um ser socrático. Sem a folclorização contínua post-mortem. Aliás, para chocar, em minha juventude eu costumava dizer que Folclore seria atraso de vida… Recordo-o, dos nossos encontros, sobretudo, por sua curiosidade e refinamento intelectuais; por sua cultura pletórica e incansável paciência para com os jovens e seu espírito agudo e percuciente, às vezes, brincalhão e nada vulgar. Instruía sem julgar. Ele sabia afagar o ego dos jovens, como eu, que aspirava então me tornar um escritor cult, como Frederico Baron Corvo, reconhecido mas lido por poucos. Achava a popularidade vulgar e subalterna. Às vezes assistia-o a comer, o que fazia com apetite, sozinho, à mesa sempre bem servida. Cascudo gostava de pôr apelidos. A Nilson Patriota, oriundo da cidade de Touros, chamava de “Bom Jesus”, numa alusão ao padroeiro local; a Bosco Lopes – que nos cobria de perdigotos – chamava de “Exu”; a mim, talvez por causa de minha magreza e densa cabeleira, costumava chamar-me de “Caetano”.

Ao tempo de minha primeira fase, como repórter da Tribuna do Norte, mandava-me bilhetinhos, convidando-me a passar a tarde em sua companhia. Passávamos horas conversando sobre Raul Pompéia, que se suicidara e sobre os subterrâneos da Antiga Roma. Ele ria de minha ideia de suicidar-me entre os 28 e 30 anos se não encontrasse uma motivação para viver, pois àquela altura eu tinha a convicção de que a Literatura não me escolhera. Afinal, não tinha nenhuma obra que pudesse justificar a minha existência e representar-me no futuro. Creio que isto o intrigava. Sempre voltávamos a esse tema do suicídio e algumas vezes fazíamos o recenseamento dos escritores que haviam cometido suicídio. Queria sempre saber o que se passava na redação e como eu via ou percebia os acontecimentos e o mundo à minha volta. Uma vez me pediu que o ajudasse num livro que estava elaborando e deveria ser, segundo me confessou, sua última obra. Temeroso, concordei e ele me agradeceu em uma carta que constitui um de meus tesouros. Creio que nos unia a admiração por Pompéia e Charles Baudelaire, sobretudo o Baudelaire das Curiosidades Estéticas. Cascudo intentava escrever um último livro, Antes da Noite, inspirada na tradição dos livros não-escritos, inventada por Edgar Allan Poe [uma de nossas admirações].

E Palmira Wanderley e Myriam Coeli? Você já fez ensaios importantes sobre a obra delas. Chegou a conhecê-las?

– Palmira foi, se pudemos dizer desta forma, quase uma presença familiar desde minha infância rural no Estevão. Seu nome fazia parte da nossa capela doméstica. Contava-se que ela fisgara um namorado de uma de minhas tias e isso fazia parte da nossa crônica familiar. Palmira era autora de versos que se cantavam para embalar-me, por minha avó que tinha uma bela voz de contralto. Minha avó me embalou cantando seus versos. Modinheiros do seu tempo, imortalizaram Palmira. Diolindo Lima a musicou. Vários outros a musicaram… Fazia parte, portanto, da nossa mitologia familiar. Quando Palmira morreu, na segunda metade dos anos de 1970, fui escalado pelo jornal Tribuna do Norte para cobrir seus funerais. Me lembro que foi velada na capela da Casa de Saúde São Lucas. Seu velório recebeu muitos amigos, admiradores e curiosos. Era o “sabiá de Natal” que se calava em uma época que já não era a sua, pelo menos, para os jovens de minha idade.

Fui fazer essa cobertura jornalística com o coração aos saltos. Contudo, não consegui escrever uma linha respeito do fato. Anos depois, quis escrever sobre essa experiência malograda de repórter ainda verde, e escrevi Os últimos dias de Palmira, fruto daquele depoimento contundente de sua prima, Wanda Wanderley Mussy, que consta do primeiro volume de O spleen de Natal. Durante muitos anos garimpei esse tema para compor o verbete de Os Lares, uma espécie de dicionário das personagens que povoam meus escritos. Foi Palmira, em uma certa época de minha vida em que me afadiguei para compor uma mínima mitologia de Natal, uma espécie de obsessão literária. Colhi de seus contemporâneos numerosos depoimentos sobre Palmira que temia morrer solteirona e era criticada por maquiar-se com exagero e por sua paixão pelo pintor Murilo La Grecca. Chegou a noivar com o jornalista assuense Moises Soares, que era alcóolatra e morreu de cirrose, um fato que a família, de grande prestigio no Assu e Natal, intentou esconder. Inventou-se até uma relação dele com os esportes, ele que era um tipo magrinho e desfibrado, tornou-se desportista, membro de um clube náutico…

Já de Myriam Coeli fui amigo e desde sempre um admirador devotado à difusão de sua obra. Acompanhei de perto seus últimos anos de vida. É a chave de um mundo poético fechado e complexo que a coloca entre os grandes criadores do nosso idioma literário, injustamente esquecida, talvez por ser arredia aos fogos fátuos que concernem à vida literária provinciana e aos literatos profissionais e semiprofissionais. No momento estou tentando colocar em palavras esse mundo metafísico do qual emergia a sua poesia tão original. Acompanhei-a até sua morte, após tantos anos de sobrevivência ao câncer que a devorava.

O seu primeiro livro publicado foi de poemas, correto? Fale-nos um pouco da construção desse trabalho e de que tratam os poemas?

– Creio que você se refere a Impróprio Para Menores de 18 Amores, livro que reúne poemas meus e de Leila Míccolis com quem morei algum tempo em Vila Isabel, enriquecido por aquelas belas ilustrações de Rodolfo Capeto. Creio que foram escritos numa fase da vida em que, se não somos parvos, gostamos de chocar a burguesia. Não fugi do comezinho, ou seja, estreei com um livro de poesia, não é? Felizmente, a fonte logo secou. Fui um poeta de fôlego curto…

Sua obra seguinte foi o Jornal Amado? Seria uma espécie de homenagem ao escritor Jorge Amado? Você teve relação próxima do escritor Baiano?

– Que valha esse livrinho que se fez à revelia do autor. Não teve previsão nem plano. Surgiu de repente, impôs-se pela temática que facilitava meu trabalho de colunista. Passei a escrever uma crônica diária de seu percurso em Natal. Está tudo lá. Um texto produzido para o consumo imediato do jornal. Tínhamos vários amigos em comum, como o Desembargador Maximiano da Matta Teixeira, se colega de Internato em Salvador, a escritora Alcyone Abrahão, a plêiade de artistas baianos e Luiz Antônio Gravatá, também chamado por Jorge de “Divina Providência”, de todos esses um dos poucos ainda vivos. Aqui, levei-o a conhecer o rio Pium, onde ele tomou banho e  saboreou cajus colhidos de galhos que se projetavam sobre as águas. Aqui ele era amigo de Milton Pedrosa, de Cascudo e de Newton Navarro. Apresentei-o a Caros Lima, a Dorian Gray Caldas e a sua irmã, a pintora Zaíra Caldas, que a meu pedido ofereceu-lhe um banquete em sua casa à Avenida Nascimento de Castro. Fomos retratados então pelo escritor José de Castro.

Como escritor, está vivamente relacionado com as minhas primeiras leituras regulares de escritor brasileiro contemporâneo, autor que podia publicar e manifestar-se, como um autor caro às esquerdas, ao colocar o povo no centro do palco. Por algum tempo serviu ao Partido, mas abriu os olhos e viu que o socialismo é uma extorsão. Quis ser uma crônica bem humorada daqueles dias da permanência do escritor entre nós. As crônicas, como tais, são ligeiras e creio que sem maiores tropeços. Eu era jovem e ousado e com a ajuda de Calasans Neto – padrinho de casamento de Jorge e Zélia – trouxe Jorge Amado a Natal. Organizei o lançamento de Tieta na Livrara Clima, que se inaugurava e o vernissage de Calasans Neto no foyer do Theatro Alberto Maranhão, autor das gravuras do livro do autor, antes do contrato de exclusividade com a Editora Record. Carlos Lima, criador das Edições Clima, pediu-me que intercedesse junto a Jorge para que autografasse Tieta em sua livraria-gráfica, em prédio que fora a sede do Banco do Povo, à Rua Doutor Barata,

A princípio, Jorge viria apenas passear aqui, durante uma semana. Ia ficar no Ceará-Mirim, mas à minha revelia Carlos reservou apartamentos para ele, Zélia, Calasans e Auta Rosa [dos quatro a única pessoa viva neste 2021], no Hotel Reis Magos, já um tantinho decadente. Esse lançamento tem uns bastidores interessantes. Sabedor de que a meu convite Jorge Amado viria a Natal, o livreiro Walter Pereira articulou-se diretamente com o General Moreira, da Editora Record, para que Jorge autografasse Tieta em sua Livraria Universitária. Soube-o através de Carlos Lima, que pediu minha intercessão em seu favor, o que fiz prestamente. Jorge acatou meu pedido, para a contrariedade do General que aqui veio e não se relacionou com ninguém. Ficou um tanto amuado, mas não teve como dissuadir o escritor do seu propósito. Jorge Amado era leal e generoso com seus amigos. Anos depois deixou de vir a Natal pela terceira vez para receber um título honorífico porque Calasans Neto o informara que o autor da concessão não simpatizava comigo. Creio que o escritor Paulo de Tarso Fernandes foi nomeado para recebê-lo em seu lugar. Por essa época, num almoço em sua casa, à Rua do Lagarto Azul 1000, numa praia chamada de Pedra da Sereia, a únjca casa da rua que era um grande areal e ele batizou com este nome, Lagarto Azul, pertencente a um amigo do escritor que ali escreveu Farda, fardão, camisola de dormir. Zélia Gattai me contou essa história que me comoveu por desvelar a lealdade de seu marido para com um obscuro escritor potiguar..  E Jorge, com aquele seu ar bonachão, arrematou: “Não prestigio desafetos de meus amigos…” Estavam presentes nesse almoço, além de nossos anfitriões, Calasans e Auta Rosa, o banqueiro português Pedro Celestino, sogro de João Jorge e o irão da cabeleireira mossoroense Socorro Azevedo que eu levara comigo. Somos, ele e eu, os únicos seres desse almoço memorável que ainda respiram… Costumava dizer-me, “escreva, escreva, faça a sua obra”. E: “Vc está sempre divulgando e pedindo pela obra dos outros, e a sua?” A seu pedido verti para o Português alguns contos e crônicas de Luísa Mercedes Levinson, dos quais O sonho violado foi publicado na revista Exu da Fundação Casa de Jorge Amado, dirigida por nossa amiga e grande poeta Myriam Fraga, autora de O livro dos Adynatas.

Você tem um livro clássico da literatura potiguar, que é o Spleen de Natal, nos fale um pouco dele, do que trata e da construção desse trabalho elogiado por muitos leitores.

– Um clássico, sim, na acepção de clássico; um livro que ninguém lê e muitos comentam. O que, aliás, não me coloca em nenhuma condição privilegiada. Não há mérito em não ser lido. Você definiu bem, Thiago. São três volumes, dos quais um apenas foi publicado, em 1996 e republicado em 2001, restando dois volumes inéditos dessa trilogia, curiosamente um sucesso editorial sonegado ao leitor pelas instituições locais. Recentemente o prefeito Carlos Eduardo Alves, se dispôs a publicar O spleen, mas fui advertido pelo secretário de cultura de Natal que essa trilogia, através da qual intentei resgatar um pouco do imaginário da cidade pela voz de seus personagens, não seria publicada, pois ele estava disposto a melar o desejo do prefeito que, segundo me tranquilizou o jornalista Walter Gomes, seria homem de palavra e cumpriria o compromisso acordado comigo… Não cumpriu. O Spleen não chega a ser dos livros que escrevi o meu preferido. É, no entanto, um livro que acompanha a cidade em sua caminhada através do Tempo. Obra de muitos, diria, pois a Cultura começa com o exercício da generosidade. É um título sempre procurado nos sebos, dizem-me com frequência. É curioso que assim seja. Talvez por ter se tornado uma raridade bibliográfica.

E de sua vasta obra, quais outros trabalhos você destacaria?

– Sempre tenho preferências motivadas pelo grau de dificuldade ou satisfação ao escrever um livro, como ocorreu com os cinco volumes de Gente de Ouro, que iniciei aos 18 anos e reúne depoimentos de potiguares que compõem a paisagem humana dos diversos municípios do Rio Grande do Norte. De todos os que escrevi, prefiro Fantasmas Cotidianos, já a caminho da segunda edição, revista e acrescentada. E meus diários escritor, como Palimpsestos e Pentimento, que me fizeram mergulhar em mim mesmo, ver e refletir sobre verdades muito íntimas que decorrem do ato da escrita. E, ao escreve-los, pude refletir e concluir que não há salvação, exceto pela criação de uma obra que nos represente no futuro. Fantasmas é também a prova de que os livros se escrevem à revelia do autor. Creio que escrevi esse livro em um estado sonambúlico, como a máquina ligada no automático. Não me sentei para escrevê-lo. Não sabia que o escrevia. Foi uma grande surpresa, para mim, como o nascimento de um ser. Quisera que O Poço de Narciso e O narguilé marroquino tivessem a mesma densidade e espírito alegre e buliçoso com que se fez esse diário de um escritor que respira o ar de Natal, mas sobretudo o da Literatura. Ainda dos inéditos, destacaria Gente de Ouro [que reúne centenas de depoimentos de agricultores, pescadores, caçadores, fazendeiros, parteiras, rezadeiras, ,empreendedores, vaqueiros, cantadores, religiosos, enfim, gente com história para contar]; Abaixo do Equador [relato de minhas viagens pela Amazônia], A Idade dos Nomes [sobre minha infância rural]; Diários do Rio [sobre minha vivência do Rio de Janeiro]; Assu, mitologia e vivências; O céu de Ceará-Mirim; O verniz dos mestres [ensaios sobre Proust]; Ensaios Mínimos; Leituras Potiguares; Cinco Minutos; A Eminência Parda e O carnaval da mulher-gafanhoto [artigos sobre políticos]; O Poço de Narciso; Palimpsestos [diários] e Everness [memórias], entre outros de que, no momento, não lembro. Como aquele famoso radio-novelista de Vargas Llosa que perdeu o controle de suas personagens, perdi o controle dos títulos que escrevi…

Você também se envolveu em algumas polemicas. Isso é devido as suas posições às vezes “discordantes” da grande maioria?

– As polêmicas são secundárias na vida de um escritor. Se não somos parvos, surgem eventualmente do exercício intelectual. Ninguém é profissionalmente um polemista; só aqui, e onde se comporta o atraso e a mesquinhez. Por outro lado, achei interessante que recorresse a um dado estatístico para prefigurar que discordo “da grande maioria”. Nesses últimos 46 anos em redações vi a polemica como exceção; quando há espírito e cultura. Seria melhor se pudéssemos prescindir de polêmicas. Sou, por natureza, indiferente a polêmicas, embora tenha o habito de ter ideias. E, se somos bem sucedidos nesses torneios, trazemos à cena encostos e damos sobrevida a fantasmas dos quais ainda não lhes caiu a ficha. Foram experiências que satisfizeram também ao meu ego, não vou negar. É verdade que a polêmica inspira sentimentos controversos, às vezes mesquinhos, como ter ou querer razão. É tão vulgar ter razão, não acha? Subir ao pódio, que coisa vulgar!

Por natureza sou infenso a essas provocações. Por isso, só polemizei, excepcionalmente, quando me deparei com a maldade humana, com a injustiça, com a vaidade e com egos inchados. Minha maior polêmica, seja dito aqui, foi travada no campo do jornalismo político, ao tempo em que dirigi a Sucursal dos Associados em Mossoró, entre 1993 e 1995. Creio que pude contribuir decisivamente para a desmitificação da toda-poderosa Família Rosado, sem dúvida uma das polêmicas mais longas do jornalismo brasileiro, em que pela primeira vez o publico do Rio Grande do Norte pode conhecer, em minúcias, o funcionamento de uma oligarquia – a mais antiga oligarquia do País. Essa polêmica, conforme sugeri ao pesquisador Misherlanny Gouthie que a pesquisasse, daria um livro extraordinário.

O que falta para o escritor local romper com os muros provincianos?

– Não há mais esses limites. Não vejo esses muros. Tudo se expande. O mundo é global. Eu prefiro o mundo aqui, desde que eu possa ir por ali. Ora, minha província é o mundo. Agora, convenhamos: é difícil viver aqui! Mesmo para um artista burguês, é difícil viver aqui. No entanto, falta a contrapartida das instituições, que trabalham sem programa e, como uma prática que se tornou cultural, impõem a vontade dos gestores em detrimento da própria cultura. Nenhum artista ou escritor local, por mais talentoso que seja, irá para a frente se depender das nossas instituições. Geralmente elas trabalham contra a cultura e de modo a subjugar e submeter nossos talentos, que hão de ter, apesar de tudo, a palavra final. Em resumo, por ora, nossos talentos não são respeitados.

Você acha que o jornal impresso, com o advento da internet, vai acabar?

– Vai, sim, e já está se acabando; pelo menos como impresso.

Isso deve acontecer com o livro impresso também?

– Não, o livro impresso há de ser sempre uma necessidade que ainda vai perdurar por muitas gerações. Talvez, para usufruí-lo, num futuro próximo, tenhamos de nos refugiar em catacumbas, longe da vista de todos … No entanto, não vejo o mundo sem o livro. O livro é, parafraseando o que disse Vinícius de Moraes do uísque, e o gato impresso e encadernado. Um luxo.

Franklin, o que você lê na atualidade de literatura?

– Em meio ao caos e ao carma que permeiam a existência humana, sobretudo releio aqueles autores que de alguma fora me enriqueceram. Nunca li best-sellers nem novidades. Nunca tive curiosidade para ler livros ou ver filmes que alcançaram o topo das listas. Nunca vi O último tango em Paris de Bernardo Bertolucci lançado em dezembro de 1972, e O poderoso chefão de Francis Ford Coppola, de 1972, vi recentemente, 50 anos depois de seu lançamento. Não tenho tempo a perder com sucessos populares… Presentemente temos uma legião de escrevinhadores desprovidos de mérito. Vivemos em tempos líquidos, sob a cultura do demérito, em um mundo cada vez mais violento e confuso, Como a barbárie que nos acossa. Que haja, portanto, o testemunho da Literatura.

Se você fosse para uma ilha deserta e pudesse levar apenas dez livros potiguares, quais seriam?

– Levaria Prelúdio e Fuga do Real. Imagens do Tempo. Natal do meu tempo. Angicos. História de Uma Campanha. Livro de Poemas. A poesia de Caldas. Cantigas de Amigo. Vivência Sobre Vivência. História do Seminário de São Pedro. A Rosa Verde. E, por ultimo, essa releitura de um clássico em versão popular, Rosa Verde Amarelou. Isto, no que se refere aos nossos autores. Levaria também Ferreira Itajubá e João Lins Caldas… Por via das dúvidas, levaria Shakespeare, Montaigne, Nietzsche, Baudelaire, Proust, Borges, o Hermann Hesse que escreveu O Lobo da Estepe, com o qual os jovens de minha geração tanto se identificaram. Levaria Paul Nizan, Ascendino Leite, Elias Canetti, Luísa Mercedes Levinson, Balzac… Agora, se pudesse levar um único livro, levaria comigo a Bíblia.

Quem são, em sua opinião, os principais nomes da cena literária do passado até o dia de hoje?

– Os mesmos de sempre, se é que você se refere a autores locais: Cascudo, Edgar Barbosa, Américo de Oliveira Costa, Ferreira Itajubá, Jorge Fernandes e alguns acréscimos, como Marcos Ferreira. Mais recentemente, o dramaturgo Carlos de Souza nos surpreendeu com o seu folhetim histriônico que satiriza os costumes de uma Natal pré-republicana, constitui uma grata surpresa. E, se a prosa chega com a maturidade, como quero crer, teremos sido abençoados pela prosa de Rodrigo Levino, sem dúvida, o maior escritor de sua geração.

Que outro tipo de arte o atrai além da literatura?

– A arte de viver e a de morrer. E, naturalmente, as artes plásticas, o teatro e o cinema.

Em sua opinião quem é o maior artista plástico do Rio Grande do Norte?

– Sempre me inclino entre Fernando Gurgel e Erasmo Costa Andrade; entre Erasmo Costa Andrade e Fernando Gurgel. Mas temos grandes artistas plásticos, como Fernando Galvão. São expressões refinadas do nosso cosmopolitismo visual. Há, ainda, Marcelus Bob, Ítalo Trindade, Adriano Santori, Madé Weiner, Vicente Vitoriano, Etelânio Figueiredo, dentre outros que agora não me ocorre lembrar. Artistas que se juntam ao dilema inicial. Como vê, não adianta nossos desafetos nos impingir rótulos, o crítico também tem dúvidas.

Quem é o escritor Franklin Jorge

– Se eu o soubesse, não estaria respondendo ao seu questionário. Assim quero crer.