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Um homem que não é Felipe

Navegos publica fragmento de livro inédito de seu Fundador, enfocando curiosa personagem da cidade de Umarizal.

*Franklin Jorge

Mimado e cheio de verve, Felipe, ou melhor, Manuel Gomes de Souza, que no batismo devia ter-se chamado Felipe, se não tivesse nascido de sete meses, segundo explica, fazendo-se de rogado, ao ser surpreendido em sua casa, depois do jantar. Ah eu não dou entrevista de jeito nenhum, vou logo avisando para não haver mal-entendidos, declara, após inteirar-se do motivo de nossa visita. Sou um homem doente, não posso dar entrevistas, senão vou passar o resto da noite acordado, pensando, revirando-me dentro da rede pelas coisas que disse. Sou um homem doente e não me chamo Felipe.

Sentado, nu da cintura para cima, rechaça as perguntas cofiando com a ponta dos dedos o bigode prateado, enquanto a mulher, muito educada, apenas sorri, balançando a cabeça de suas criancices. Não sei o que o senhor anota tanto nesse caderninho, se não estou dando nenhuma entrevista, para não piorar o estado de minha saúde, muito precária, pois nasci de sete meses, em Floresta do Navio, Pernambuco, terra de Lampião, onde tenho parte com os Novais. Já ouviu falar desse povo da família Novais, de Floresta do Navio…? Ah, então não sabe nada. E vai continuar na ignorância, pois não lhe direi uma palavra sobre a minha família.

Se conheci Lampião…? Ah, se eu não fosse um homem doente, contaria ao senhor que Lampião era gente lá de casa e até batizou dois dos meus irmãos, mas não quero me cansar, para não agravar meu estado de saúde. Se eu falar não vou conseguir dormir e não quero passar a noite rolando dentro da rede, chateado por ter falado com um jornalista que vive de anotar a vida alheia. Não, meu senhor, comigo não. Nada de entrevista, pois meu estado de saúde não me permite dar entrevistas. Se o senhor continuar insistindo em me entrevistar eu também vou começar a lhe fazer perguntas e a querer saber de sua vida, mas não farei isso porque nasci de sete meses e sou um homem doente.

A casa, limpa e bem cuidada, fica numa das ruas centrais de Umarizal, perto da igreja matriz e da agência do Banco do Brasil, um prédio grande, construído ainda numa era em que o município tinha vida econômica importante e ativa. De qualquer forma, a cidade ainda continua sendo um pólo regional, embora os negócios tenham diminuído com a crise. Casado com Raimunda, a primeira mulher que conheceu ao chegar à cidade em 1979, recebeu dela um copo d´água e nunca mais a esqueceu. Foi amor à primeira vista, admite, apesar de ser um homem doente que não pode dar entrevista. Se o senhor pensa que eu vou contar alguma coisa sobre Lampião está muito enganado. Pode tirar o cavalinho da chuva e botar a sua curiosidade de molho, pois não lhe direi nem uma vírgula. Sou um homem infartado e não posso conversar com jornalistas, ainda mais à noite, sem ganhar nada, enquanto o senhor está ganhando para perguntar sobre a vida dos outros.

O senhor por acaso vai me pagar alguma coisa para eu lhe contar que Lampião era amigo de meu pai e frequentava a Fazenda Betânia, em Floresta, onde ele gostava de jogar baralho com o meu pai? Vai pagar? Sei que o senhor não é relógio para trabalhar de graça…Eu também não. Ah, não pense que vai me levar na lábia só porque eu sou um homem doente e não me chamo Felipe porque nasci de sete meses. Eu não vou contar mais nada, para não perder o sono, pensando em Lampião, quando devia estar tentando repousar. Era só o que faltava eu perder o meu tempo contando o que sei sobre Lampião, grande amigo do meu pai e padrinho de dois dos meus irmãos. Se quer saber, eu alcancei Lampião comendo e dormindo na fazenda Betânia, jogando baralho direto com os meus tios Manuel e Antônio, de dia e de noite, se tivesse com quem jogar. Era o vício dele, Lampião, jogar baralho quando achava com quem. Jogava que era uma beleza… Eu não vou contar mais nada não, porque estou doente. Eu vivo doente. Se eu contar alguma coisa, perco o sono, não vou conseguir dormir, não é, Raimunda? Agora me diga uma coisa, como foi que soube que eu conheci Lampião? Ah, é de Natal, é? Tinha até graça alguém ser de Natal e ir morar em Mossoró, onde não tem nada. Eu pensava que o homem sempre procurava as suas melhoras, mas não. Vejo que não teme nenhuma ingrisia, como essa de trocar Natal por Mossoró. O senhor é diferente. Trocou o melhor pelo pior. Pois saiba que, apesar de ser um homem doente, eu nunca que haveria de trocar o melhor pelo pior. Mossoró é muito quente. Tenho parentes lá, mas não troco Natal por Mossoró… Valha-me, Raimunda, ele trocou o melhor pelo pior… Deixou Natal para se enterrar em Mossoró, uma terra que só dá petróleo e pessoas da família Rosado… Nesse mundo de meu-Deus tem gosto pra tudo…

[2]

O senhor quer muita coisa… Estou imaginando que queira também minha doença ou não quer? Para querer tanta coisa, deveria queria também minha doença, pois afinal eu sou um homem que nascei de sete meses e por isso trocaram meu nome de Felipe para Manuel. Manuel Gomes de Souza, desde 1979 morando em Umarizal, não é, Raimunda? Hoje eu não estou lembrando nada não. Nessa idade, não estou lembrando mais nem do meu nome… Se estou com bom aspecto, como o senhor diz, eu lhe garanto que isso não me serve de nada, pois passo a noite acordando e me levantando, sem encontrar sossego nem repouso dentro da rede. Não esqueça que sou um homem infartado e não me chamo Felipe, porque nasci de sete meses. Ah, então o senhor conhece o François? Ele ainda chega a ser meu parente. Ah, não existe nenhum cristão como François.

Pode existir igual, mas melhor, não. Quando ele chega aqui é uma festa… Então conhece mesmo François? François Silvestre? Oh primo bom! Quando ele vem aqui toma conta da casa, não é, Raimunda? É uma alegria receber o primo François. Uma vez ele mandou uns jornalistas me entrevistar. Oh gente perguntadeira danada é jornalista. Não deixam passar nada. Não respeitam a saúde de ninguém. É uma gente que ganha para fazer a gente falar… É uma profissão maneira, essa, de jornalista. Sou primo de François, sim, e basta! Não queira saber mais! Não digo mais nada, ouviu? Olhe aí, já contei uma coisa que não era para contar. Que sou primo de François. Que o senhor quer mais? Jornalista é sempre igual. A gente dá a mão e logo eles querem o pé… Se tenho filhos…? Graças a Deus, não.

Se eu tivesse um filho, vivendo nesse mundo em que vivemos, estaria agora muito aperreado. Estaria no mínimo dando de comer a vagabundos. O pior aperreio que pode haver para um cristão é ter um ou mais filhos. É uma gente trabalhosa, os filhos. Agora, se quer saber, tenho um bocado de irmãos, mas o senhor não vai ficar sabendo do nome de nenhum deles não… Quanto eu ganho para contar o nome deles? Vocês, jornalistas, por mais astuciosos que sejam, não vão ganhar um tostão nas minhas costas não.

Quando eu quero também sei ser sabido e não vou dar entrevista, pois sou um homem doente que não consegue pregar os olhos à noite. Passo a noite inteira acordando e me levantando, na maior agonia, não é, Raimunda? Eu nasci de sete meses. Se quer saber, acho o casamento um negócio muito ruim para o homem. A mulher, sim, é quem faz bom negócio, casando-se. O homem, casando, arranja logo uma mulher e filhos para sustentar. Não aconselho nenhum homem a casar. Agora toda mulher devia encontrar marido. Mulher sem marido não tem futuro. Ora, por que me casei? Me casei por que sou doente e perdi minha mãe ainda moço. Ela morreu e eu fiquei, doente e sozinho no mundo. Se ela não tivesse morrido, eu vivia com mulher sem me casar. Com essa que aí está eu tenho que ficar com ela até morrer, porque quero bem demais a ela, que é o coração de minha vida de homem doente que nasceu de sete meses. A vida é boa demais ao lado de Raimunda… Nem lhe conto o prazer que tenho na companhia dessa mulher… Minha vida, se quer saber, foi toda boa. Basta que lhe diga uma coisa: nunca morei em Mossoró. Nunca passei fome, graças a Deus. Não tenho inimigos. E ainda tive a sorte de vir parar em Umarizal, um lugar bom, onde há muita gente que se diz minha amiga, mas não sei se são.

Quem sabe é Deus. Vivo aqui há 27 anos. Faça as contas. Cheguei aqui em 1979, no mesmo mês em que Lampião passou por aqui, quando foi assaltar Mossoró. Colchete era meu irmão de criação. Vivia na fazenda Betânia, na casa do meu pai. A mãe dele era romeira e ia para o Juazeiro, quando se arranchou no terreiro de nossa casa, em Floresta do Navio, Pernambuco. Ela pariu ele lá e antes de prosseguir em busca do Juazeiro, deu o bruguelo à minha mãe. Ela ia pedir a benção a Padre Cícero e, como estava amojada e nas vésperas do parto, pariu ali mesmo, sem mais tardança, a caminho do Juazeiro.

Nós ficamos chamando o filho dela de Colchete, que depois fez parte do bando de Lampião. Não perca seu tempo fazendo anotações. Eu não vou contar nada. Não adianta botar verde, para colher maduro, que dessa boca o senhor não vai saber nada sobre Lampião nem sobre o tempo em que ele vivia na casa do meu pai. Maria Bonita fazia justiça ao nome, ouvi muito dizerem isso lá em casa.

Era bonita mesmo. Eu não me lembro dela porque era muito pequeno, tinha quatro ou cinco anos quando Lampião vivia jogando baralho com os meus tios. Não vai ser por minha boca que o senhor vai ficar sabendo que ele era viciado em cartas de baralho. Pergunte a um homem são, não a um homem doente, como eu, que tive o nome trocado de Felipe para Manuel, porque nasci de sete meses. Se eu tivesse saúde contaria tudo. Procure outro para matar a sua curiosidade. Não vou contar mais nada não. Era só o que faltava eu perder o meu tempo, fazendo o gosto de jornalistas. Só Deus sabe como eu vivo. Tem dias em que eu não posso nem andar.

Mas eu ando, porque sou muito teimoso e não vou dar o gosto a uma dorzinha aqui e outra acolá. Todo dia dou o meu passeio pelas ruas de Umarizal. Vou aqui e ali, conversando com um e com outro, pois assunto é que não falta numa cidade pequena onde todos se conhecem e muitos se dizem meus amigos, mas eu não boto a mão no fogo por ninguém, a não ser por minha mãe, que já morreu, e por Raimunda, que aqui está. Assim é o meu dia a dia. Depois do passeio, quando chego em casa, almoço com Raimunda. Como bem. Ah se como! Nada me faz mal nem tira o apetite. Sou capaz até de comer manga com leite e peixe com melancia e não sentir dor numa unha. François é um primo-irmão.

Quero mais bem a ele do que aos meus irmãos. A gente conversa sobre muitas coisas. Às vezes só faço ouvir, porque sou muito cismado e sei que não é bom dizer tudo o que a gente sabe. Aquela Casa de Cultura foi ele quem fez, mas a governadora deu uma rasteira nele; logo nele que a ajudou a botar o pé no governo. Que mulher ingrata! Só zela por seus interesses… Mas não vou encompridar essa conversa não. O senhor só está gastando papel e tinta, mas o que quer saber não digo não, por que posso perder o sono. Não quero passar a noite mexendo na rede, acordando e me levantando, porque, como sabe, sou um homem doente.

Por vinte anos andei no mundo sem dar notícias a ninguém… Morei em São Paulo, onde ainda tenho parentes… Pode tomar nota… Eu conheço os estados do Brasil todinho. Gostei de todos… Como eu me mantinha? Eu comprava e vendia roupas pra menino, pra moça, pra velho, pra velha… E nunca fui cativo de ninguém. Nunca trabalhei pra ninguém nem recebi ordens. Pode tomar nota. Eu passei vinte anos sem dar notícias à minha mãe por que ela quis mandar em mim… Se sou feliz? Sou, graças a Deus. Andei o mundo todo e nunca ninguém buliu comigo… O senhor quer muita coisa… Oh povo para não se contentar com nada é jornalista. A gente dá o pé e logo eles querem a mão inteira. A gente dá uma mão e logo eles querem as duas… Eu sou doente, mas não sou besta não. Jornalista não consegue nada comigo. Eu só lhe digo uma coisa. Não devo nada a ninguém. Não presto vassalagem a ninguém porque sou doente e o doente pode tudo, até não prestar homenagem nem dar entrevistas.

Valha, Raimunda! Ele tirou o meu retrato sem camisa. Eu tenho muita raiva de sair num retrato sem camisa. Fico danadinho quando saio num retrato nu da cintura pra cima. Ora se eu me incomodo com a opinião dos outros. Quem quiser que fale mal de mim. Eu só uso camisa por dentro das calças. E só ando de sapatos. Você pensa por acaso que eu saio à rua de sandálias, é? Como é mesmo a sua graça? Ave Maria, Raimunda. Que nome difícil o desse homem. Mesmo uma pessoa sã tem dificuldade de aprender esse nome estrangeirado. Imagine eu que sou doente e não me chamo Felipe… Não admira que seja tão teimoso e renitente alguém com um nome dessa qualidade. E, abrandando a voz, persuasivo, melífluo, Se pelo menos o senhor se chamasse Felipe.