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Um lugar que Natal esqueceu

Colaborador de Navegos, em trabalho para o Curso de Jornalismo  escreve sobre um dos bairros emblemáticos de Natal, há muito abandonado pelo poder público.

*Pedro Octavio de Oliveira

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Xarias e canguleiros, por muitos anos, foram os gentílicos usados pelos habitantes da provinciana Natal, em desenvolvimento ali pela zona convergente entre Cidade Alta e Ribeira, onde tudo acontecia. Em um bairro, moravam as velhas famílias, estavam os consultórios médicos, os ambientes de trabalho; noutro, como a fonte de renda da cidade, comercializava-se tudo que fosse possível. Nessa dicotomia, as crianças foram crescendo, as pessoas foram se familiarizando e “entre xarias e canguleiros a rivalidade era velha e durou dezenas de anos. Moleques, valentões, meninos de escola, desocupados, mantinham o fogo-sagrado dessa separação inexplicável.”, como dissera Câmara Cascudo em sua Acta Diurna de 08 de novembro de 1942.

Sob estes auspícios de grande confluência cultural, possibilitada especialmente pela zona portuária e ferroviária ali instaladas, pelas quais entravam e saíam pessoas frequentemente, a Ribeira passou a oferecer serviços comerciais de alta qualidade. Abrigou ainda o Teatro Carlos Gomes, um dos mais bonitos exemplares do nosso acervo patrimonial, e os educandários Escola Doméstica, de conceituada metodologia suíça, e o Grupo Escolar Augusto Severo, com professores de criteriosa formação intelectual. Por isso, destacava-se na capital como o bairro de maior expressividade urbana.

O jornalista e escritor Franklin Jorge, 71 anos, promotor cultural dos maisdiletos de Natal, ex-servidor da Fundação José Augusto, enquanto pontua oportunamente o ápice do bairro como palco de grandes acontecimentos, pincela rapidamente o motivo que levou a terra-natal dos canguleiros à decadência: “durante a Segunda Guerra atingiu o seu apogeu como um centro comercial e boêmio por excelência. Sua decadência se deu com   o

fim da guerra e o contínuo e progressivo deslocamento do comércio, primeiro, para a Cidade Alta, já há muitas gerações o bairro administrativo e residencial, no momento em franco processo de ribeirização e decadência que, a partir dos anos de 1970, nenhum governante tem conseguido deter ou redimensioná-lo.”.

Considerando tal explicação, a Ribeira hoje encontra-se entregue ao ocaso, com um acentuado êxodo comercial, provocado especialmente pelo surgimento do bairro Alecrim como propulsor econômico, e uma significante marginalização populacional. Maurício Nascimento de Andrade, 43 anos, jardineiro, funcionário de uma empresa de paisagismo, confirma esse fenômeno quando diz que “a realidade da Ribeira seria outra totalmente diferente se houvesse uma restauração, porque isso ia gerar muito emprego, mas do jeito que está esquecida, afasta os empresários de investirem aqui. Sem falar na violência que também está demais, atrapalhando muito nosso comércio, como você viu eu passo o dia com cadeado no portão, abrindo só quando tem cliente.”.

A Fundação José Augusto, responsável pela manutenção cultural e patrimonial do Rio Grande do Norte, teria papel fundamental na execução dessa tão sonhada revitalização. O tombamento do patrimônio arquitetônico deveria consistir não somente na proibição da demolição, mas sim, no incentivo à preservação, o que levaria o Poder Executivo e a iniciativa privada a traçarem um plano de renascimento das glórias da velha Ribeira.

Franklin Jorge, como ex-funcionário do órgão, não se abstém de apontar francamente os desvairios que atravessam a vontade pública: “a Fundação        tem se revelado no curso do tempo inimiga da cultura, seja na incapacidade de implementar uma política de cultura séria, capaz de resistir e sobreviver a eventuais caprichos de seus gestores, seja na qualidade de seu quadro, sempre submisso a expedientes midiáticos levianos que a tornaram uma instituição malvista e desacreditada pela sociedade e a opinião pública do Estado.”. Tal posicionamento corrobora com o depoimento do jardineiro Maurício Nascimento de Andrade, que afirma ter recebido funcionários da FJA somente uma vez, quando estiveram lá para entregar uma declaração de tombamento do prédio na Rua Doutor Barata.

A Ribeira foi o coração e a alma da cidade antes de se tornar a ruína que , a acusar a inércia e a indiferença dos governantes. Os valores históricos e culturais de Natal precisam reencontrar as suas raízes para que permaneçam sendo difundidos e explorados além Rio Grande do Norte, o que aconteceria com ainda mais intensidade a partir dessa necessária mudança.