• search
  • Entrar — Criar Conta

Um poeta que parte…

O poeta Horácio Paiva homenageia João Charlier Fernandes, poeta potiguar falecido dia 5 de setembro de 2023, autor do livro “Entrega ao Mito”.
*Horácio Paiva

Com o encantamento de João Charlier Fernandes, ocorrido no último dia 5 de setembro, o Rio Grande do Norte perde um grande poeta – que, aliás, pouco chegou a conhecer – e, eu, um grande amigo e autor do admirável prefácio à minha “A Torre Azul”, obra poética à qual dedicou profundas considerações.

Como já o disse antes, quando fui seu arauto num artigo sobre ele e Nelson Patriota, surpreendente e mágico é o singular caminho de Charlier em nossas letras.

Nele, há dois perfis, ambos responsáveis pela grandeza de sua poesia: o barroco, pelo preciosismo da linguagem, e o gótico, pelo preciosismo das imagens  –  o que nos traz o fio encantador, o ambiente de integração espiritual e estética de sua poesia a outras artes, e, entre estas, a presença, ainda que simbólica, da música e da arquitetura.

Não há exagero em situar, na sua leitura, a lembrança de velhas e eternas catedrais góticas, associada ao som do órgão e do cravo, diletos intérpretes da música absoluta de tantos geniais artistas barrocos, a exemplo de Bach, Vivaldi, Scarlatti…

Tais perfis, postos, com maestria, em rigorosa disciplina no ato de escrever, são formadores de uma obra bela e original, e que, embora contemporânea, situa-se, com feição de perenidade, à margem das tradicionais escolas delimitadoras do tempo estilístico. Com acerto pode-se incluir “Entrega ao Mito” no rol das melhores obras literárias  –  no segmento Poesia  –  do Rio Grande do Norte.

O encanto provocado pela leitura atenta e profunda da obra de Charlier remete-me à emoção que senti, no final da década de 1970, ao ler, pela primeira vez, outro admirável poeta, que também revela natureza gótica: Paul Celan, judeu romeno de língua alemã que, com o advento da Segunda Grande Guerra, exilou-se e fixou residência na França, onde veio a falecer em 1953.

João Charlier Fernandes nasceu em Caraúbas, sertão do Rio Grande do Norte, no dia 20 de maio de 1944, filho de Reinaldo Fernandes Pimenta, tabelião público, e de Gizélia Gurgel Fernandes Pimenta, ambos de tradicionais famílias sertanejas. Após concluir o primário em Caraúbas, veio para Natal, onde cursou, no Atheneu, o ginasial e o clássico. Desde criança, demonstrou ser um grande leitor, e suas primeiras produções poéticas datam da adolescência. Participou, em Natal, do chamado “Movimento dos Novíssimos”, que agrupava jovens escritores da época (início da década de 1960), inclusive eu e seus irmãos Anchieta Fernandes e Fernando Gurgel Pimenta. Seu nome consta em diversas antologias. Publicou na imprensa local e nacional.

Poeta, ensaísta e crítico literário premiado. Somente há pouco tempo, em março de 2016, surgiu o seu belíssimo “Entrega ao Mito”, do qual extraio e aqui reproduzo essa elegia às antigas arcas, ou melhor, arcazes (cujo título por si só é precioso achado), “Nênia para os velhos arcazes”, uma obra-prima, com a notável e nítida presença dos aspectos gótico e barroco, e a meu ver, nesse sentido, referência maior do livro:

NÊNIA PARA OS VELHOS ARCAZES

 

Arcas: memória que eu prendo

Mas redimo.

Nelas ficaram os epitáfios

E os meus passos

Quase mantos frios.

 

Guardiãs de trapos

E pedaços

Nelas ficaram os ornatos

De aios e magos alados

Florões de traços

Esmagados

Pelos pálios.

Arcas: grã-vassalas

Dos vesanos

Nelas só ficaram os

Desenganos.

 

………………………………………………………………………………………………………………………..

 

*Horácio de Paiva Oliveira é poeta, advogado, escritor, presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA, membro da União Brasileira de Escritores – UBE/RN, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN.