*Horácio Paiva
Com o encantamento de João Charlier Fernandes, ocorrido no último dia 5 de setembro, o Rio Grande do Norte perde um grande poeta – que, aliás, pouco chegou a conhecer – e, eu, um grande amigo e autor do admirável prefácio à minha “A Torre Azul”, obra poética à qual dedicou profundas considerações.
Como já o disse antes, quando fui seu arauto num artigo sobre ele e Nelson Patriota, surpreendente e mágico é o singular caminho de Charlier em nossas letras.
Nele, há dois perfis, ambos responsáveis pela grandeza de sua poesia: o barroco, pelo preciosismo da linguagem, e o gótico, pelo preciosismo das imagens – o que nos traz o fio encantador, o ambiente de integração espiritual e estética de sua poesia a outras artes, e, entre estas, a presença, ainda que simbólica, da música e da arquitetura.
Não há exagero em situar, na sua leitura, a lembrança de velhas e eternas catedrais góticas, associada ao som do órgão e do cravo, diletos intérpretes da música absoluta de tantos geniais artistas barrocos, a exemplo de Bach, Vivaldi, Scarlatti…
Tais perfis, postos, com maestria, em rigorosa disciplina no ato de escrever, são formadores de uma obra bela e original, e que, embora contemporânea, situa-se, com feição de perenidade, à margem das tradicionais escolas delimitadoras do tempo estilístico. Com acerto pode-se incluir “Entrega ao Mito” no rol das melhores obras literárias – no segmento Poesia – do Rio Grande do Norte.
O encanto provocado pela leitura atenta e profunda da obra de Charlier remete-me à emoção que senti, no final da década de 1970, ao ler, pela primeira vez, outro admirável poeta, que também revela natureza gótica: Paul Celan, judeu romeno de língua alemã que, com o advento da Segunda Grande Guerra, exilou-se e fixou residência na França, onde veio a falecer em 1953.
João Charlier Fernandes nasceu em Caraúbas, sertão do Rio Grande do Norte, no dia 20 de maio de 1944, filho de Reinaldo Fernandes Pimenta, tabelião público, e de Gizélia Gurgel Fernandes Pimenta, ambos de tradicionais famílias sertanejas. Após concluir o primário em Caraúbas, veio para Natal, onde cursou, no Atheneu, o ginasial e o clássico. Desde criança, demonstrou ser um grande leitor, e suas primeiras produções poéticas datam da adolescência. Participou, em Natal, do chamado “Movimento dos Novíssimos”, que agrupava jovens escritores da época (início da década de 1960), inclusive eu e seus irmãos Anchieta Fernandes e Fernando Gurgel Pimenta. Seu nome consta em diversas antologias. Publicou na imprensa local e nacional.
Poeta, ensaísta e crítico literário premiado. Somente há pouco tempo, em março de 2016, surgiu o seu belíssimo “Entrega ao Mito”, do qual extraio e aqui reproduzo essa elegia às antigas arcas, ou melhor, arcazes (cujo título por si só é precioso achado), “Nênia para os velhos arcazes”, uma obra-prima, com a notável e nítida presença dos aspectos gótico e barroco, e a meu ver, nesse sentido, referência maior do livro:
NÊNIA PARA OS VELHOS ARCAZES
Arcas: memória que eu prendo
Mas redimo.
Nelas ficaram os epitáfios
E os meus passos
Quase mantos frios.
Guardiãs de trapos
E pedaços
Nelas ficaram os ornatos
De aios e magos alados
Florões de traços
Esmagados
Pelos pálios.
Arcas: grã-vassalas
Dos vesanos
Nelas só ficaram os
Desenganos.
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*Horácio de Paiva Oliveira é poeta, advogado, escritor, presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA, membro da União Brasileira de Escritores – UBE/RN, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – IHGRN.