*Franklin Jorge
Satirista inesgotável e perspicaz, Esmeraldo Siqueira impôs aos seus desafetos a pior das mortes – a morte pelo ridículo, que resulta do desempenho de um papel que provoca o riso e desmoraliza toda e qualquer ação séria ou virtuosa, relacionada com o indivíduo vítima de uma verve epigramática que o faz transitar, pelo resto da vida, como um folclórico figurante de Bumba-Meu-Boi provinciano.
Todos sabemos que não há antídoto para o riso, especialmente para aquela espécie de riso que resulta da apreensão do ridículo de pessoas que se acham as donas da capitania e se persuadem de que têm, além do poder transitório obtido algumas vezes através de barganhas e conchavos escusos, o domínio das opiniões.
Esmeraldo não escreveu como Lourival Açucena (1827/1907), nosso primeiro poeta histórico, cantor sacro e seresteiro que se destacou também por seu espírito mordaz aliado ao rotineiro uso do cacete de jucá, para exemplo dos desafetos, embora em seus versos tenha sempre cuidado de se exprimir em tese. Inteligente e esperto, Lourival nunca deu nome aos bois e assim pôde usufruir, junto aos poderosos, de algumas benesses.
Ao contrário, Esmeraldo dá nome às vítimas marcadas com o seu acerado estilete de satirista capaz de flagrar, através de um verso desafetado e preciso, o ridículo mais recôndito. Dessas, muitas delas ainda continuam vivas e influindo na vida da cidade.
O padre Monte, considerado um santo e um sábio por seus contemporâneos, foi lapidado através de uma prosa insolente e inofensiva, em relação ao verso esmeraldino, penetrante e corrosivo, além de espirituoso e facilmente memorizável pelos ouvintes. Prosa e verso, de Esmeraldo, ainda lembrados com satisfação na calçada do Café São Luiz por aqueles que acompanharam de fresco suas diatribes e catilinárias.
Luís da Câmara Cascudo foi um alvo constante das setas envenenadas de Esmeraldo e lhe inspirou prosa e verso terríveis que às vezes deixavam escapar uma mal dissimulada inveja, pois a rigor, nesse caso, não havia fundamento no que escrevia, conforme o tempo haveria de provar.
É muito freqüente, na história da literatura, este comportamento obstinado de um autor inexpressivo ou de segunda ordem em relação a um outro que sabe estar, de alguma forma, muito acima de seu próprio talento. E que, por seus méritos, torna-se o alvo dos achaques, por vezes caluniosos, de que a inveja sabe ser pródiga.
Esmeraldo terá sido para Cascudo e para muitos outros que serviram de alvo para o humor souteneur dos seus epigramas empáticos, o que a professora Isabel Gondim foi para Nísia Floresta, ao longo de sua dilatada existência, uma atenta e implacável detratadora.
Temperamento compulsivo e obsessivo, durante muito tempo Esmeraldo quis provar que a obra cascudiana resultava do esforço intelectual de terceiros, contribuindo assim para reforçar a ideia, corrente em Natal numa certa época, de que Cascudo era apenas um enfant gaté, ou seja, o filho mimado e estragado de pais por muito tempo bem montados no dinheiro e no prestígio. Nada mais.
O jornalista Aluízio Macedônio, em capítulo do meu livro O Céu de Ceará-Mirim, depõe que ele ainda enumerava os hipotéticos ghost-whriters do autor de Prelúdio e Fuga do Real. Porém todos esses morreram e Cascudo continuou por mais trinta ou quarenta anos escrevendo e publicando sua obra, indiferente aos apetites da província canibalesca.
Costumava, em conversa, chamar a atenção de todos para a suposta ignorância e o despreparo de Cascudo, a quem via com maus olhos, inclusive por seu trabalho de folclorista, uma coisa decididamente menor no universo literário cascudiano. Em sua opinião, Veríssimo de Melo, articulista pitoresco e autor de plaquetes irrelevantes, seria, por seu talento e cultura, superior a Cascudo, juízo que bastaria para desautorizar a crítica esmeraldina. Veríssimo sequer pertencia ao mundo da alta cultura. Era apenas um divulgador contumaz do talento alheio, o que constitui verdadeiramente seu único mérito numa terra que não consagra nem desconsagra ninguém.
Em Fauna contemporânea, livro esgotadíssimo e condenado ao ostracismo, por ser uma obra embora muito curiosa restrita e datada, além de mal vista, sobretudo, por aqueles que lhe serviram de inspiração, Esmeraldo Siqueira anatematiza Cascudo em três sonetos, ao lado de políticos boquirrotos, jornalistas de aluguel, príncipes da Igreja simoníacos, magistrados venais e interesseiros e, como não podia faltar em seu catálogo de mediocridades, intelectuais de ego inflado.