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Um slide viciado

O que é o eu que há em nós? E entre um eu e outro eu, quantos eus há? Também tornamos eu os autores que lemos.

*Eloy Fernández Porta

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Dizem para eu dizer quem eu sou (1). Mas eu não sou propriamente eu (2). Que intervalo é esse / que desliza entre mim e eu? (3) Abismo, infelizmente! / Entre um eu e um eu (4). O eu é uma pessoa ausente / para quem mandamos cartas / que sabemos que nunca chegarão. / Hoje escrevo o último / porque sei que o meu eu nunca chegará (5). Bem-aventuradas as regras das métricas / que (…) nos libertam dos grilhões do eu (6). Me colocaram no trem, com meus documentos, sejam eles quais forem. Eu tinha me livrado de todos, mas aparentemente eles reapareceram (7). O que ele sempre soube, o que sempre o fez pensar – e quando digo “pensar”, quero dizer rir e chorar, sofrer, rezar, atormentar-se –, terá sempre sido a sensação férrea da distância infinita que separa o “carro”. de si mesmo, do abismo sem fundo de e na presença consigo mesmo: nada mais, ele não experimentou mais nada (8). Mas um também é muita gente (9). Com tantas vozes na sua cabeça, como você pode ouvir a sua? (10) Uma autobiografia, neste sentido, teria que ser sobretudo o testemunho de um desconhecimento (11). Essa calma nebulosa das 23h39, esse estado inacabado de estar completamente sobrando, quem disse? Quem escreve? Será, talvez, o Dormodor, que me proporcionou um sono correcto na noite passada, com a sua fase REM adequada e os seus ciclos regulados de profundidade e superfície? Ou talvez o Dormicum, que, tomado ao mesmo tempo, com a água num copo de vinho que reservo para essas ocasiões, cumpriu a missão que o Orfidal e o Rivotril, companheiros de meses, os meus doces, já não eram capazes de cumprir. realizando, agora que me acostumei com seus efeitos? Será na feliz combinação entre estas duas drogas que ocorre esta frase, interrogativa mas não alterada, mais curiosa do que estranha? Meu corpo já aprendeu a aguardar com certa alegria o advento do Neurontin, aquele deux ex machina que, pouco antes das refeições, assume os efeitos dos soníferos e parece me manter num recife de calma, longe dos picos do desespero ? Será que a nobre prosapia que desde o final do século XIX questionou com tanta elegância as fontes da identidade e da integridade do ego nada mais é do que uma corda para os embriagados, um escorregador para os drogados? Não será que nessas desajeitadas questões existenciais há uma leve calma que não pode ser encontrada nas emanações do eu autossuficiente e redondo? Mas eu sou realmente minha droga?

 

Eloy Fernández Porta
Los brotes negros (inédito no Brasil)

(1) Enrique Vila-Matas
(2) Paul Gauguin
(3) Fernando Pessoa
(4) Blai Bonet
(5) Jaime Siles                                                                                                                                                                                                                                                                      (6) WH Auden
(7) Leonora Carrington
(8) Jean-Luc Nancy
(9) Rafael Humberto Moreno -Durán
(10) David Cronenberg
(11) Cristina Rivera Garza