*Marcelo Alves Dias de Souza
Na querida Aliança Francesa de Natal, onde estudamos o idioma de Jules Verne (1828-1905), conversamos estes dias sobre as “cidades do futuro”. Tema importantíssimo, já que, segundo consta do nosso livro/curso, se no começo do século XIX apenas 2% da população mundial vivia em cidades, esse percentual será de 66% lá pelo ano 2050.
Mas como serão, então, essas cidades do amanhã? Segundo o nosso livro/curso, é possível apresentar quatro grandes tendências de evolução das cidades: (i) a criação de espaços verdes, inclusive para fins alimentares, integrados aos imóveis residenciais e comerciais; (ii) bairros ou cidades inteiras autossustentáveis energeticamente; (iii) uma mobilidade urbana muito mais diversificada e conectada; (iv) e, com o desenvolvimento galopante das tecnologias, a existência de um verdadeiro big data urbano. Até aí tudo bem. Parece um cenário positivo.
O problema é que os próprios especialistas estão preocupados com essa última tendência. As vantagens de uma cidade “inteligente” são inegáveis. Conforto e segurança serão dois pontos bem positivos. Mas isso pode cair no exagero. Numa videovigilância quase total. Pelo governo, por gigantescas empresas ou por um algoritmo qualquer. Uma sociedade pan-óptica. Um Big Brother. Em detrimento do cidadão e da democracia. Da privacidade e das liberdades civis.
E foi aí que a conversa caminhou para aquilo que eu mais gosto: a literatura. Por sugestão da própria professora, começamos a discutir o que os franceses chamam de “roman d’antecipation”, um tipo de ficção científica que “evoca as supostas realizações do futuro. Que se apoia no estado atual da ciência, da tecnologia e da sociedade, e imagina as suas consequências num futuro mais ou menos próximo”. E talvez seja Jules Verne, citado acima, o primeiro nome que nos vem à mente quando tratamos desse tipo de literatura.
Se não me engano, falamos de livros/distopias como “Admirável mundo novo” (“Brave New World”, 1932), de Aldous Huxley (1894-1963), que imagina, para a Londres do ano 2540, uma sociedade inflexível, condicionada física e emocionalmente, por critérios reprodutivos e de nascimento artificialmente estabelecidos. De “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury (1920-2012), que descreve um futuro em que os livros são proibidos e queimados, o pensamento crítico e as opiniões próprias são vedadas. Uma América anti-intelectual, pode-se dizer, sem suspeitar qualquer paralelo com o estado atual das coisas por lá. E, claro, de “1984” (“Nineteen Eighty-Four”, 1949), de George Orwell (1903-1950), que mostra o cenário de uma sociedade totalitária futura, sob a dominação do “Partido”, em um mundo pós-guerra nuclear total. Um ambiente de total monitoramento, no qual o “Big Brother is watching you”.
Todavia, para mim, a coisa mais interessante se deu com a apresentação de um romance distópico que eu não conhecia: “Les Furtifs”, de Alain Damasio (1969-), lançado pelas Éditions La Volte, quase agora, em 2019. Novíssimo, portanto. E sem tradução para nosso português.
Basicamente, num futuro próximo, as cidades que hoje conhecemos foram adquiridas por multinacionais. Paris pela LVMH, Lyon pela Nestlé, Cannes pela Warner e por aí vai. Com todas as consequências disso decorrentes, como a expulsão dos habitantes de suas moradias, o super encarecimento destas, o fim da democracia comunal etc. Há quem ache bom. Mas há também quem resista. Na cidade de/a Orange, isso se dá. Há os “furtivos”, criaturas extraordinárias que, mimetizando animais, plantas e minerais, misturam-se ao ambiente e escondem-se da nossa visão. E há a história pessoal de um pai em busca da filha desaparecida, alegadamente sequestrada pelas tais criaturas quase invisíveis. O romance foi muito bem recebido. Vendeu bem, críticas positivas (em especial quanto à riqueza do vocabulário, certamente por isso sugerido no nosso curso de francês) e já recebeu alguns prêmios. Quero ler, sem dúvida.
Só uma coisa me encafifou: com essa ideia (de alguns) de privatizar de tudo e mais um pouco, será mesmo “Les Furtifs” apenas uma distopia?