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Uma iluminação retrospectiva

Em um trecho da “Prisioneira”, Proust justifica sua ideia de um ciclo de obras unificadas por personagens em comum, que reaparecem ao longo das obras sucessivas, e nos mostra que sua ideia vem de Balzac e de Wagner.

*Marcel Proust

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Mas, apesar da riqueza dessas obras em que a contemplação da natureza se encontra ao lado da ação, ao lado de indivíduos que não são apenas nomes de personagens, pensei até que ponto, no entanto, as obras desse caráter sempre incompletas – embora maravilhosamente – e que fazem parte o personagem de todas as grandes obras do século XIX. Sem nos determos naquele, que viu a posteriori em seus romances uma Comédia Humana, nem naqueles que chamaram alguns poemas ou ensaios sem sentido de A Lenda dos Séculos e A Bíblia da Humanidade, não podemos, porém, dizer que ele encarna o século XIX tão bem que as maiores belezas de Michelet devem ser procuradas, mais do que na sua própria obra, nas atitudes que toma para com ela; não em sua História da França ou em sua História da Revolução, mas em seus prefácios a esses dois livros? Prefácios, ou seja, páginas escritas depois dos livros e nas quais você os julga, e às quais você tem que acrescentar aqui e ali algumas frases que geralmente começam com “me atrevo a dizer”? o que não é uma precaução de um sábio, mas a cadência de um músico. O outro músico, aquele que me cativou nesse momento, Wagner, tirando da gaveta uma peça deliciosa para colocar como tema retrospectivamente necessário em uma obra que não havia pensado na hora de compô-la, compondo posteriormente uma primeira ópera mitológica, depois outra, e outras, e de repente percebendo que acabara de fazer uma Tetralogia, deve ter se sentido um pouco tão embriagado quanto Balzac quando este último, lançando sobre suas obras o olhar de um estranho e de um pai ao mesmo tempo , encontrando em uma a pureza de Rafael, em outra a simplicidade do Evangelho, de repente lhe ocorreu, projetando sobre ela uma iluminação retrospectiva, que elas seriam mais belas juntas em um ciclo em que os mesmos personagens reaparecessem, e ele deu sua obra, assim acoplada, uma pincelada, a última e mais sublime. Unidade interna, não falsa, porque teria desabado como tantas sistematizações de escritores medíocres que, com grande reforço de títulos e subtítulos, parecem ter perseguido um propósito único e transcendental. Não falso, talvez ainda mais real por ser ulterior, por ter nascido num momento de entusiasmo, descoberto entre fragmentos que só precisam de se juntar; unidade que foi ignorada, portanto é vital e não lógica, unidade que não proscreveu a variedade, que não esfriou a execução. É como um fragmento composto separadamente (mas desta vez aplicado ao todo), nascido de uma inspiração, não exigido pelo desenvolvimento artificial de uma tese e que vem a ser incorporado ao resto. Antes do grande movimento orquestral que precede o retorno de Isolda, a mesma obra atraiu para si o som de flauta meio esquecido de um pastor. E, sem dúvida, assim como a progressão da orquestra à medida que o navio se aproxima, ao apoderar-se dessas notas da flauta, ele as transforma, associa-as à sua exaltação, quebra-lhes o ritmo, ilumina-lhes a tonalidade, acelera-lhes o movimento, multiplica-as sua instrumentação, então o próprio Wagner exultou de alegria quando descobriu essa velha canção do pastor em sua memória, acrescentou-o à sua obra, deu-lhe todo o seu significado. De resto, essa alegria nunca o abandonou.

Marcel Proust