*Márcio de Lima Dantas
A exposição de abertura da Galeria de Arte Ruth Palatinik Aklander, do bistrô Estação Natal, foi uma individual do artista pan-semiótico J. Medeiros. Reputado artífice do signo estético, detentor de uma inesgotável capacidade de manusear as mais diversas técnicas, tendo se destacado com precisão e rigor em quase todos os ramos das artes visuais. Inscreve-se como um dos mais importantes artistas norte-rio-grandenses, sobrevoando desde o início da sua carreira as comarcas relacionadas ao experimentalismo e ao que segue na vanguarda das muitas linguagens que ousou plasmar na sua vasta produção, sobremodo as sínteses alcançadas quando da junção de códigos diferentes, tais como a mesclagem entre o pictural e a palavra escrita. Os trabalhos expostos foram elaborados em papel canson branco e riscados com nanquim, sendo que três foram confeccionados com caneta esferográfica preta. É impressionante o efeito extraído através de um meio tão prosaico – uma simples caneta esferográfica encontrada em qualquer bolso de balconista.
E assim a mão se compraz na gestualidade apressada de compor uma harmonia que engendre a boda possível entre a linha curva e a linha reta, sugerindo a fusão do apolíneo com o dionisíaco. Sabe-se que o ângulo reto encontra-se mais do lado do masculino, assim como a linha curva bandeia-se para os arrabaldes da fêmea. Nesse sentido, os dois, enleados num nervoso corpo a corpo, entrelaçam-se num raro e inusitado equilíbrio de formas, abrindo, por vezes, amplos espaços internos, mormente nos quatro trabalhos de fatura mais minimalista, quando a economia de meios anseia preencher o vazio retangular do papel. Nos demais, a energia nervosa se apraz num desejo de fusão entre o que detém ângulos retos e o que conserva em seu poder a curva e o círculo. Eis a demonstração de uma aliança que deu certo, encetando a novidade de uma beleza plástica quase sempre difícil de se lograr. Poucos estilos históricos empreenderam o desafio de harmonizar a razão, cristalizado nas geometrias que remetem ao quadrado ou aos ângulos retos (arquitetura grega), com a emoção, ordenada nas linhas sinuosas (arquitetura barroca). Contemporaneamente o pós-moderno nos seus prédios até que tenta.
Um dos elementos que se destacam ao se contemplar com atenção os riscos visivelmente traçados com naturalidade, como se a ponta da caneta não tivesse saído do papel, é a presença de discretos hachuramentos formando triângulos, salpicando de negro pequenas áreas, conduzindo o observador a atestar a loquaz diferença entre as duas formas básicas de representação, e conseqüente necessidade de atinar um sentido para a confluência num mesmo plano do abaulado e do reto.
Há um outro signo bastante curioso que vale a pena chamar atenção, falo do título das obras. O título se reveste de uma grande importância para a eficiência máxima do efeito sugestivo na mente do expectador. Poucos ou nenhum alguém seria capaz de relacionar determinado desenho à Medusa, se não fosse o título aposto à margem esquerda do papel. Com efeito, o título indica o rumo, a reta e a curva daquilo que o artista desejou circunscrever, mesmo em se tratando de algo tão volátil quanto um desenho de natureza abstrata, apoucado em vigorosos gestuais, plenos na sua capacidade de imprimir no espírito do leitor uma determinada espécie de semiose cujos entornos fazem fronteiras com sentimentos penetrantes e inquietos, baldeando os aparentes equilíbrios que racionalizamos no intuito de suportar com mais amenidade os punhais e as flechas que as Parcas soltam a torto e a direito nos sencientes.
Posto que a estabilidade da composição firma-se na eloquente vivacidade de quem busca juntar o que simbolicamente foi sempre representado como antípoda, de quem ousa entrelaçar duas formas naturais contrastantes (mas também complementares), resta-nos, quando da contemplação dos desenhos, a possibilidade de um eventual deleite do que subjaz inconsciente aos nossos esquemas mentais estabelecidos por uma sociedade cujos substratos são os maniqueísmos de toda ordem e lugar. Enfim, só nos resta a pergunta que nos imprime o desassossego dos desenhos de J. Medeiros: será que tudo não passa de uma questão de ângulo?