*Alexsandro Alves
I.
Praticamente toda a obra de Mahler é um diálogo sobre a morte. A canção das crianças mortas, a Segunda sinfonia, a Quinta sinfonia, a Canção da terra, são obras que refletem sobre a condição humana diante da inevitável conversa final que todos teremos. Eu considero Mahler o compositor mais filosófico da história da música. Suas melodias e harmonias, por vezes quase inaudíveis, tendendo para o silêncio, são um landscape da alma moderna. Embora influenciado por Wagner, pouco notamos de heroico em sua música, é mais provável encontrarmos melancolia, tristeza e uma vontade de vitória, tudo isso em confronto com a vida, que em Mahler pode ser algo jocoso, tortuoso e expressionista.
A Quarta sinfonia, em Sol maior, é uma obra incomum entre as produções do compositor, pois ela tende para uma espécie de retorno ao classicismo, mas só superficialmente.
As sinfonias anteriores de Mahler, gigantescas na forma e descomunais em sonoridades, desenharam no gosto do público um compositor afeito à monumentalidade wagneriana, por isso que, quando Mahler estreou a Quarta sinfonia, o choque foi intenso. Uma sinfonia que dura menos de uma hora, com orquestra menor e sem trombones, em tradicionais quatro movimentos cíclicos. Ninguém esperava isso dele.
E as sonoridades dessa Quarta são intimistas. Há os grandes tutti orquestrais, mas a obra como um todo é mais delicada e sorridente do que espalhafatosa.
II.
Na Quarta sinfonia, somos conduzidos pela vida e pela morte de uma menina. Talvez por isso a música sempre soe, ou sempre procure soar, mais feliz e leve. A menina morre, mas isso é natural, e não lamentado, a morte faz parte da natureza e convive com ela. Por mais que essa vida seja boa, a morte é um descanso e o início de outra.
A música inicia com toques de sinos de Natal. Imediatamente ouvimos um gesto corriqueiro nas obras de Mahler: canto de passarinhos! As madeiras (flauta, oboé, clarinete, fagote), respondem aos sinos como que despertando de um sono, subitamente. Essa característica tipicamente mahleriana de intercalar cultura e natureza, está presente em todos os movimentos dessa obra. E sempre as madeiras são cantos de passarinhos.
Os passarinhos levam aos violinos que introduzem o primeiro tema da obra: uma melodia que parece uma dança, mas é uma caminhada por um bosque, por isso a música irradia graça e os cantos dos passarinhos surgem de todos os lados e acompanham cada instrumento. Esse primeiro tema, jovial, é seguido pelo segundo, iniciado nos violoncelos, mais sério e com caráter mais terno. Após a exposição do segundo tema, o clarinete volta com seu chilrear. Novamente ouvimos os sinos de Natal e o primeiro tema, é uma reexposição diferente das tradicionais, porque Mahler desenvolve já nessa parte seus dois temas. Embora seja um momento curto que leva a um terceiro soar dos sinos de Natal.
É aqui que a música ganha mais profundidade. A resposta aos sinos de Natal agora não são de violinos alegres, mas um único violino que executa uma melodia estranha e grotesca: a Morte surge aqui. E com ela, a nostalgia invulgar típica de Mahler, toda a sequencia agora, incluindo os passarinhos, é adornada de uma aura de mistério e ao mesmo tempo de paz. A Morte surge em meio à natureza como integrada a ela, embora seja, pelo soar de sua música, uma figura bem esquisita.
Agora os passarinhos estão mais meditativos e o diálogo das flautas com os fagotes, respondidos pelos clarinetes e oboés introduzem uma nova dimensão a nossa pequena heroína. Ela, em sua infantilidade, está ouvindo, em uma caminhada pelo bosque, o encontro da Morte com a natureza, e eles falam dela.
E temos o primeiro grande clímax da música, toda orquestra é levada a expressar-se, um tema importante aqui é dado pelos trompetes: esse tema é o mesmo que Mahler usará no primeiro movimento da Quinta sinfonia: a marcha fúnebre.
Quem toca este trompete? Uma resposta imediata é a Morte. Mas não é ela. Ela não é heroica, é esquisita e surge com naturalidade e sem pompa. Os passarinhos também desconhecem esse tom.
Na Quinta sinfonia esse tema do trompete é o início do primeiro movimento, que é uma marcha fúnebre para o herói morto.
Aqui na Quarta pode ser uma antecipação da morte da menina. Uma espécie de chamado para o inevitável que é tocado pelo vida – ou, inocentemente, pela própria menina.
Se fôssemos moralistas diríamos que é cruel, mas Mahler está além.
III.
O segundo movimento é a marcha fúnebre.
Uma marcha fúnebre bizarra. Antes de mais nada, não é nada heroica. Parece mais aqueles quadros medievais com uma Morte tocando violino. É um horror que beira o cômico. A própria música da Morte, já prenunciada no primeiro movimento, encontra aqui seu desenvolvimento. O único violino que a executa está desafinado, mais parecendo um som de rabeca do que de violino.
Mahler conviveu com esse aspecto excêntrico em sua vida infantil. Quando seus pais iniciavam suas brigas homéricas, o garoto corria em direção à feira e lá se colocava ante tocadores de rabecas e trovadores populares. Esse consolo que a arte popular lhe dava está presente em todas a suas composições das mais variadas formas. Aqui, essa lembrança ressurge no toque desconcertante da rabeca da Morte.
O movimento no entanto não tende para o sinistro, embora pareça se encaminhar para algo assim, logo a música encontra um tom ora de brincadeira ora de ternura. A Morte não se configura como algo violento, ela pode até ser bizarra, mas sabe ser bem delicada.
É esse segundo movimento que se assemelha ao expressionismo de filmes alemães da época. Tortuosos, um pouco histéricos, mas poéticos e humanos.
O terceiro movimento Mahler denominou Ruhevoll, “Descanso”, em alemão. É a paz e a tranquilidade do toque final da Morte. É um movimento longo que é herdeiro dos adágios de Bruckner. No fim do movimento, inesperadamente, a orquestra é sacudida de vez pelos tímpanos e pelas trompas. É a saudação divina à alma da menina que acaba de adentrar o Paraíso.
E assim, no Céu, a menina morta canta Wir genießen die himmlischen Freuden, é o quarto movimento. “Gozemos as alegrias celestiais”.
Para Mahler, a alma de uma criança continua infantil, porque a visão do Céu da menina é de um paraíso com muita comida onde todos comem. Por todos os lados há muita comida e São Lucas é o açougueiro! A sinfonia termina delicadamente, o mais delicado que Mahler pode chegar. É como uma passagem para outro mundo.
Abaixo, uma gravação com Claudio Abbado e Magdalena Kozená.