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Viagens na minha terra

Diz-se espirituosamente que escrever e coçar vai do começar. Minha experiência, porém, parece desmentir essa boutade. Há que ter-se um capital de experiência feito, paciência e disposição para levar-se adiante um processo que enseja obstáculos os mais diversos, como viajar pelo desconhecido. Como escritor, fixei-me em um tema, a terra e o homem, como a maioria dos escritores nascidos no Ceará-Mirim que, por suas características estilísticas, chegam a constituir uma Escola, no dizer do crítico José Lívio Dantas. A Escola do Ceará-Mirim.

*Franklin Jorge

É sabido que o trabalho do artista progride lentamente. Além da questão do talento, ou do dom – como diria minha avó materna –, há todo um processo de aquisição de conhecimento que se realiza gradualmente através de estudos e pesquisas, há o não menos oneroso em determinação e uso do tempo, o exercício de elaboração que resulta no pleno domínio dos recursos intelectual e artesanal, matéria-prima e ferramenta sem as quais não há criação nem artefato estético. Como a formiga que se prepara para o inverno, colhendo e transportando penosamente a comida para a sua toca, o artista precisa de esforço e paciência para obter os meios de que necessita para expressão do seu talento em obra digna de ser usufruída por todos.

Tudo isso minha avó resumia numa curta frase, “trabalho e paciência”. Lembro-a, aqui, porque noutro século, ao completar dezoito anos, recebi dela um inusitado e significativo presente de aniversário – uma longa incursão pelo interior de minha terra. Percorri, então, senão todos os municípios, a maioria deles – que não eram tantos como agora… –, da sede urbana aos mais longínquos recantos e sítios rurais, para, assim, habilitar-me a escrever sobre a brava terra potiguar, um tema que para mim se tornou, com o tempo, uma forma de obsessão.

Eu me lembro que nessa época nossa família enfrentava dificuldades, embora eu tivesse recebido parte de uma herança deixada por meu bisavô materno, grande proprietário de terras e imóveis na região no Mato Grande e, em especial, no Ceará-Mirim. Essa viagem descortinou-me um mundo novo e a consciência de uma realidade que me surpreendeu e encantou. Além de viajar sozinho, sem a salvaguarda de um parente querido e protetor, tive a grata oportunidade de conhecer terra e gente desconhecidas que me abriram os olhos para a maravilhosa diversidade de que é feito o mundo. Mais que uma excursão turística, um rito de passagem para o adolescente inquieto e fatigado que tinha a ideia fixa de tornar-se escritor.

Minha avó se inspirara em um parente distante, o cronista Manuel Ferreira Nobre que em 1861 acompanhara o governador Pedro Leão Veloso, numa viagem a diversos municípios da província, resultando desse périplo uma “Breve Noticia” que vem a ser, historicamente, o primeiro compêndio publicado sobre o Rio Grande do Norte. Ela pensava que, como eu queria ser escritor, poderia produzir um outro livro do mesmo gênero. Creio que nascia assim “Viagens na minha terra”, que somente começaria a escrever uma década depois, ao reiniciar minhas andanças por terras potiguares, sob a motivação de uma rotina jornalística que incutiu em mim a disciplina e a consciência de quão árduo resulta o ato de escrever, quase sempre, para o olvido.

Durante trinta anos palmilhando o estado, demorando-me mais nuns municípios do que noutros, colhendo aqui e ali informações e depoimentos, ouvindo pessoas, revendo personagens e lugares, acompanhando as metamorfoses que o tempo, esse grande escultor, tem produzido em sua marcha inelutável sobre a terra. Trata-se, pois, de um livro que pretende lançar um olhar original sobre o nosso chão comum, ao consignar além da visão do autor a memória de muitos outros.

Há muito desejo refazer integralmente esse roteiro inicial com o intuito de finalizar o livro “Viagens na minha terra”, acompanhado de fotógrafo, para os necessários registros iconográficos. Porém, após tantas intempéries existenciais e governos desastrosos para a cultura que se faz ao largo da bajulação e do servilismo, eis-me aqui, sem apoio nem recurso, para custear esse empreendimento.

 

 

Em destaque, o autor entrevistando Frans Krajberg em Nova Viçosa; acima, a casa na árvore, ainda em construção. Fotos de Alcyone Abrahão, 1981. arquivo de FJ.