*Franklin Jorge
Em que circunstância conheceu o Villaça?
Foi por volta de 1968 que conheci o Villaça, a quem fui apresentado pela Dra. Marlene Murad, advogada e escritora, então sua colega de trabalho na COPEG. Gostei dele de estalo; sobretudo por sua ausência de pose. E como eu ia às vezes àquela empresa tratar de assuntos particulares, aproveitava para lhe fazer uma visita relâmpago. Depois, em 1973, ao publicar o meu segundo livro, Sal do Saldo, pedi-lhe um prefácio, coisa que não negava a quem quer que fosse. Generoso, ele me encheu de elogios, exatamente o que eu, vaidoso e inseguro como todos os que pedem prefácios, estava a buscar.
Como o descreveria?
Quanto ao físico, era enorme, obeso, rosto redondo. Glutão e gurmê, era capaz de trocar a nona sinfonia de Beethoven por alguma guloseima. Quanto à alma, era um anjo caído na superfície da Terra, um desajeitado para a vida prática. Seu reino, como o de Jesus, não era deste mundo. Viveu para as coisas do espírito. Era dono de uma cultura enciclopédica e da memória mais impressionante que conheci. Viveu e morreu pobre, apesar de bisneto de um dos homens mais ricos do Rio de Janeiro do século 19, Joaquim da Costa Ramalho Ortigão, irmão do grande escritor. E o mais triste é que morreu sozinho, longe do mundo as letras. A última vez que o vi, quando o visitei na Casa São Luiz, no Caju, achei-o infeliz, impaciente, de mau humor. Nada o satisfazia. Não aceitava o desfecho que o destino lhe havia reservado. Apesar disso, teve amigos que jamais lhe faltaram, como o saudoso Marcos Almir Madeira, Alberto da Costa e Silva, Pedro Macário, e vários outros, entre os quais modestamente me vejo incluído.
Lembra-se de algum episódio curioso envolvendo-o? Como foi?
Sim, lembro-me de um episódio que, mais que curioso, é dramático, ou melhor, trágico. Trata-se de que a Academia Brasileira de Letras o contemplou com um polpudo prêmio pelo conjunto da obra. Pedro Macário e eu fomos assistir à bela cerimônia de entrega do cheque de cem mil reais. Mesmo descontada da parcela do imposto de renda, era uma importância que caía como uma bênção para ele, que era franciscano e sabia viver com o mínimo. Pois bem. Não tardou para que, em Curitiba, um enfermeiro que lhe havia prestado serviços, entrasse com uma ação trabalhista contra o Villaça. E ele, que ingênua e displicentemente depositara o dinheiro no próprio nome, sem sequer haver pensado na possibilidade de abrir uma conta conjunta com alguém de sua confiança, teve o seu prêmio judicialmente bloqueado. Morreu sem um centavo, com uma soma enorme dormindo no cofre. E o mais revoltante: avesso a disputas, preferiu morrer pobre a lutar por seus direitos. Pedro Macário e eu fizemos de tudo para que ele partisse para a briga, mas não houve jeito; ele simplesmente nos proibiu de insistir nesse assunto.
Sobre o que conversavam? Onde se encontravam?
Conversávamos sobre vários assuntos, com prioridade para literatura brasileira. Villaça tinha sempre uma história interessante a contar sobre escritores e pessoas que formavam o elenco da nossa mitologia. Tinha indisfarçada admiração por Gilberto Amado, que parece havê-lo impressionado enormemente. Quanto aos locais em que nos encontrávamos, eram também diversos: no Hotel Mauá, em Santa Teresa, onde morou, nos lançamentos de seus livros, nos almoços anuais de 31 de agosto pelo seu aniversário, e sobretudo no Pen Club, na Praia do Flamengo, onde fui algumas vezes, sozinho ou com Pedro Macário, para levar-lhe uma palavra de carinho. Encontrei-o também algumas vezes na Rua Primeiro de Março. Numa delas, ele acabara de chegar da França, onde fora fazer uma entrevista que ficou famosa, com Jacques Maritain. Outra, de que jamais me esquecerei, foi no Bar Previdente, esquina daquela rua com a Rua Buenos Aires, onde nos encontramos uma tarde com Roberto Alvim Corrêa, um dos homens mais admiráveis que conheci, misto de santo e de sábio. Era catedrático de Francês e Literatura Francesa na Faculdade Nacional de Filosofia, onde eu fora seu aluno. Nós nos gostávamos muito, apesar da diferença de idades. Roberto Alvim Corrêa, que vivera muitos anos na França, contou-nos então que, certo dia, num café de Paris, alguém viera oferecer-lhe bem barato um belo quadro de Modigliani, que ele não tivera dinheiro para comprar. Nunca me esqueço disso.
Gostaria de falar um pouco mais sobre o Bar Previdente. Para tanto, devo dizer que sou funcionário aposentado do Banco do Brasil e que trabalhei dezoito anos no prédio em que hoje funciona o Centro Cultural. Dizer também que, todos os dias, às quatro da tarde, o nosso pequeno grupo ─ Roberto Barquette, católico fervoroso, Márcio Chavadian, irreverente e iconoclasta, e eu ─ descíamos para um lanche no citado bar, que ficava quase em frente. Ao grupo, juntavam-se às vezes os poetas Octávio Mora e o saudoso Eugênio Bressane. Felizes, servidos com prazer pelo querido garçom Gonçalves, lanchávamos no tempo exíguo de que dispúnhamos. E aqui, encaixo o que quero contar. Que desses encontros vespertinos, onde falávamos de tudo e de todos, resultou um poema, que acabei por incluir no livro que o Villaça apresentou:
Lanche erudito
a Márcio Chavadian
Em torno dessa mesa, todo dia,
matamos nossa sede, nossa fome,
e quanto mais se bebe, mais se come,
mais se engorda de brisa e poesia.
Prazer de mastigar o pão torrado
molhado em café quente e humanismo,
sorver aos goles, Bíblia, cristianismo,
sondar se o mel do mal contém pecado.
Falar de futebol, filosofia,
passando de Pelé a Kierkegaard,
entre fumaça, pó, e muito alarde,
lembrar o novo tema: ecologia.
Cinema e diretores: prato cheio
para o mingau-de-aveia da cultura;
delícia de sabor fica a mistura
de pão com queijo, René Clair no meio.
Um pulo na pintura, e besuntamos
a boca de manteiga e de fovismo;
cubinhos de Picasso e de cubismo
para tirar o gosto, e terminamos.
Levanta-se por fim, deixa-se a mesa,
levando-se dali o que se pode,
fatias de alegria, de beleza,
farelos de Fellini no bigode.
Chegaram a passear juntos pelo Rio? Para onde?
Sim, mas só de carro. Lembro-me de uma vez em que lhe dei carona até Santa Teresa e de outra em que o peguei no Pen Club para irmos almoçar no Lamas, no Flamengo. Quanto às nossas pequenas caminhadas, resultantes de encontros fortuitos no centro do Rio, não comportam a idéia de passear juntos, de flanar. Posso dizer porém que, na fase em que o conheci, Villaça era ágil, muito ágil. Foi, enquanto pôde, um verdadeiro andarilho.
Como ele era visto por seus pares?
Villaça era um admirador nato, um deslumbrado com todos de que gostava. E a bem da verdade, gostava de meio mundo. Suponho que fosse também admirado por muitos, pois não há como negar que era um grande escritor. Tinha, como Midas, o dom de transformar em ouro aquilo que tocava. Qualquer tema que abordasse, ou virava obra-prima, ou passava perto disso. Tenho como certo que sua obra ficará. Não só os seus livros de memórias, O nariz do morto, O anel, O livro de Antônio e Degustação, como também os trabalhos de pesquisa, História da questão religiosa e O pensamento católico no Brasil.