*Marcelo Alves Dias de Souza
Não faz uma semana, assisti, na escola onde estudo italiano, a uma palestra intitulada “Michelangelo a Roma”. Um hora e algo, em italiano pausado e bem falado (para que curiosos como eu pudessem entender a coisa toda), sobre aquele que muitos consideram o maior gênio do Renascimento (é o que defende, por exemplo, Georgio Vasari, no seu famoso “Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori”, a primeira consistente biografia de artistas na história da arte). Arquiteto, escultor e pintor (embora, reza a lenda, ele não gostasse de pintar), Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475-1564) é natural de Florença. Faz parte daquela torrente de gênios que a cidade dos Medicis, por nascimento ou por acolhimento no seu ambiente intelectual e artístico único, emprestou ao mundo.
Mas se Florença é a cidade de nascimento de Michelangelo, hospedando muitas de suas mais importantes obras (a famosa estátua David, por exemplo), é em Roma – até pela importância que esta cidade, de imperadores e de papas, tem para a humanidade – que a obra de Michelangelo se faz mais visível. Do Michelangelo arquiteto, tem-se a cúpula da Catedral de São Pedro e a praça do Capitólio (“Campidoglio”, por aqui); do escultor, a famosa “Pietá”, sita na Catedral referida; e, do pintor, a ainda mais famosa, dado o conclave papal de dias atrás, Capela Sistina. E estes são apenas alguns exemplos, como ficou muito claro na palestra a que me referi no começo deste riscado.
Bom, não vou, aqui, evidentemente, repetir a tal palestra. Nem vou, muito menos, falar em termos gerais sobre arte ou sobre Michelangelo. Faltando-me conhecimento para tanto, eu deixo isso para um Kenneth Clark (autor da maravilhosa série para TV e do livro “Civilização”, de 1969), para um E. H. Gombrich (autor do best-seller “A História da Arte”, de 1950), cujas leituras, por sinal, eu recomendo “assai” (como se diz por aqui).
Vou apenas fazer alusão a uma obra-prima de Michelangelo que fui rever por esses dias em Roma e, sobretudo, à sensação que esse reencontro provocou em mim. Afinal, se de arte pouco sei, das minhas sensações quem mais sabe sou eu (muito embora não saiba se elas interessam a alguém).
Falo da estátua de Moisés, que Michelangelo esculpiu em mármore, inicialmente como parte do monumento fúnebre do Papa Júlio II, cardeal Della Rovere (1443-1513), o mesmo papa que comissionou ao artista o teto da Capela Sistina (e o “forçou” a pintar, para o bem da humanidade). De tão gigantesco, esse monumento nunca chegou a ser concluído, mas nos deixou, felizmente, o seu Moisés.
E o fiz por um motivo muito particular. O Moisés de Michelangelo encontra-se na Igreja de San Pietro in Vincoli que, por sua vez, se acha a dois passos do Hotel Palatino (sito à Via Cavour, 213), onde, garoto de 11 anos, com os meus pais e outros familiares queridos, fiquei pela primeira vez em Roma. O ano era 1984, e estávamos na Urbe para canonização de Santa Paula Frassinette (1809-1882), tão cara para nós ex-alunos do CIC. Das imediações da estação Termini, onde estou hospedado, facilmente desci a Via Cavour, passei pelo fundos da Basílica de Santa Maria Maggiore e, logo após ter avistado o Hotel Palatino à minha direita, subi a antiquíssima escadaria (incrustada em um túnel de pedra, parecendo estar ali desde sempre) que vai dar na praça da Igreja, como fiz, certamente segurando as mãos dos meus pais, há quase trinta anos.
A visita foi (quase) toda tomada por uma sensação que só posso definir como de “saudade de um tempo que já não volta mais”. Uma sensação angustiante que você, caro leitor, tenho quase certeza, já deve ter experimentado alguma vez.
Mas essa sensação, felizmente, foi interrompida por um fato curioso: um senhor, muito distinto, aproximou-se de mim e perguntou, em inglês, o que era aquele “objeto”, bem no centro da Igreja, que eu, ao mesmo tempo que consultava um livro, estava fotografando. Quase um “Parla, Marcelo”. Expliquei, numa mistura de italiano e inglês de fazer rir, que eram as correntes que, reza a lenda, teriam acorrentado São Pedro em Jerusalém (por isso a igreja se chama “in Vincole”). Pelo biotipo, aquele senhor parecia vir das bandas da Índia ou do Paquistão. E era alguém ligado ao serviço diplomático ou uma autoridade de Estado, talvez em Roma para a cerimônia de entronização do Papa Francisco, já que, ao saírmos juntos da igreja, fui até o seu carro, um carro oficial com motorista e tudo, que o esperava na praça.
Conversamos um pouco sobre Michelangelo (portanto, a palestra assistida “valeu a pena”), e ele me pediu para explicar ao seu motorista que ele queria, atendendo às minhas sugestões, visitar a praça do Capitólio e a Basílica de Santa Maria degli Angeli e dei Martiri (construída “dentro” das Termas de Diocleciano, aproveitando a mesma estrutura), projetos do grande arquiteto renascentista. Muito agradecido, convidou-me até para ir junto. Apesar de muito distinto aquele senhor, polidamente recusei o convite, já que lembrei a lição, ensinada pelos meus pais quando eu ainda perambulava segurando as suas mãos, de que não se deve aceitar caronas de estranhos, ainda mais na terra dos outros.
Mas aquele senhor desconhecido, mesmo sem saber, me prestou um favor muito maior do que aquele que eu, aparentemente, prestei a ele. Primeiramente, tirou-me daquela melancolia de querer, sem poder, reviver um tempo que já passou. Mas, sobretudo, me fez recordar as lições que recebi dos meus pais no tempo de “eu menino”. E não falo da lição comezinha de “não aceitar carona de estranhos”. Mas das lições, lembradas ali por associação, de amor pela leitura, pelas artes e por Michelangelo, de fé na humanidade em geral e nos seus homens e mulheres santas em particular. Lições que recebi ainda no tempo daquela minha primeira viagem a Roma.