*Luís da Câmara Cascudo
Natal sempre se dividiu nos dois bairros veteranos do seu povoamento: Cidade Alta e Ribeira.
A Cidade Alta, historicamente, começa numa coluna onde está o Tribunal de Apelação, outrora edifício do Congresso Estadual.
A Ribeira denúncia um alagadiço d´água salobra que se espraiava por toda a praça Augusto Severo. Chamavam também o Salgado.
A maré vinha lavando desde o pé dos morros, onde passa a a Avenida Rio Branco, englobando Avenida Sachet, a conhecida Campina da Ribeira, um terço da Rua Coronel Bonifácio e saldos da Rua Dr. Batata.
Era um banhado que reluzia ao luar e envergonhava o sol. Para o trânsito havia uma simples pinguela: um toro de madeira atravessado, logo após a Estação da Estrada de Ferro Central, onde estão o Teatro Carlos Gomes, Grupo Escolar Augusto Severo e Escola Doméstica, era água e lama. Está ainda vivo e forte quem tomou banho por ali, nas madrugadas tépidas, esperando o pão-quente que saía de uma padaria onde se ergue o palacete da Recebedoria de Rendas.
Da ponte para cima viviam os Xarias. Da ponte para baixo, moravam os Canguleiros.
O limite máximo era a ponte. A fronteira comum se lindava no Beco do Tecido, isto é, Rua Juvino Barreto, extrema da freguesia do Bom Jesus das Dores da Ribeira.
Entre farias e Canguleiros a rivalidade era velha e durou dezenas de anos. Moleques, valentões, meninos de escola, desocupados, mantinham o fogo-sagrado dessa separação inexplicável.
Naturalmente as famílias da Cidade e da Ribeira conviviam com o afeto. Os meninos, os criados, esses encontrando gente do bairro do outro lado, iam às vias de fato, infalivelmente.
O grito de guerra, de ambos os lados, era:
– Xaria não desce!
-Canguleiro não sobe!
Do Beco do Tecido em diante só os campeões se afoitavam depois do escuro da noite. Pau, miolo de aroeira, quiri, canivete, tomavam a palavra.
Na festa da padroeira, em novembro, os Canguleiros vinham em bandos, armados. Assistiam aos atos, aplaudiam os fogos mas sabiam que o combate era fatal, no Beco do Tecido.
Havendo circo de cavalinhos dava-se a tragédia para os Xarias. O circo quase sempre armava-se na Ribeira. A música de seu Candinho (Cândido José de Melo, administrador do cemitério), contratada, trazia um cortejo de admiradores. Esses não passavam da ponte.
Do lado de lá, os Canguleiros esperavam lambendo o beiço…
Desde 1880 essa tradição aparece.
Qual sua profissão popular?
Originava-se da alimentação preferida pelos dois bairros, na ictiofauna nordestina.
No “Canto da Ribeira”, fim das ruas Chiles, Silva Jardim e Frei Miguelinho, abicavam as jangadas trazendo o peixe abundante. O pescado mais farto era o Cangulo, Balistes Vetala, o Peixe-porco.
Na Cidade, os gostos se decidiam pelos xaréus e xareletes, caranx hippos, caranx chrysos, vindos de Areia Preta e Ponta Negra.
Canguleiro é comedor de cangulo, assim como xaria é comedor de Xaréu.
Os apelidos vieram dessa simpatia gastronômica.
Muita cabeça partida, muito nariz amassado, muito braço ferido, muita prisão, foram corolário desses pratos antigos nas ceias gostosas do velho Natal provinciano.
Tudo ajudava a dissensão. Os soldados do Exército possuíam o Quartel na Cidade. O Batalhão de Segurança tinha o seu na Ribeira. Os meninos do Grupo Escolar Augusto Severo, na Ribeira, eram “intrigados” com os seus colegas do Colégio Santo Antônio, na Cidade.
Verdadeiras batalhas foram travadas, com espadas de arco de barril, pedradas, areia insultos dignos de um herói troiano.
A comunicação fácil matou a desavença. A 7 de setembro de 1908 os bondes subiam e desciam, sem cessar. A subida da ladeira, Rua da Cruz, hoje avenida Junqueira Ayres, calçada, iluminada, apertou os laços cordiais. Em 1911 a eletricidade completou a fusão.
Xarias e Canguleiros morreram. Nasceu o natalense.
A República, 08 de novembro de 1942.